Passeio pelo rio Amazonas – Uma das Maiores Aventuras da Minha Vida

Este post é uma homenagem ao meu pai  e também um presente para a turma do meu filho , que acaba de cursar o 5o ano, onde estudaram instensamente a região da Amazônia.

Querido quinto ano, vou contar para vocês uma das maiores aventuras que tive na minha vida, quando eu era apenas um pouquinho mais velha do que vocês: tinha uns 12 anos de idade.

Mas antes disto, queria falar uma coisa sobre família e sobre quem nós nos tornamos durante a vida. Algumas características nossas nascem com a gente e são só nossas (somos sempre diferentes dos nossos irmãos, para os que tem irmão, e somos diferentes também dos nossos pais e mães em muita coisa). Mas outras características vem lá de trás, dos nossos pais, ou mesmo de nossos avós, sem que a gente mesmo perceba isto. São como sementinhas que eles deixam no ar, que acabam brotando e rebrotando, através de nós e de todas as pessoas que vivem na mesma família.

Acredito que a vontade de viajar, da nossa família Scalabrin, é uma destas coisas que vem vindo de várias gerações. A minha avó Almelinda, mãe do meu pai, viajou muito pouco durante a vida dela, embora fosse neta de imigrantes que vieram da Italia um dia. Talvez muitos de vocês tenham tataravós também que vieram de outros países para o Brasil, mesmo da Itália, em busca de uma vida melhor por aqui em tempos de guerra ou crise econômica. Mas a minha avó, bisavó do Felipe, Almelinda, morava numa cidade chamada Caxias do Sul, no interior do Rio Grande do Sul. Como eu disse, ela quase nunca viajava, talvez o lugar mais longe que ela tenha viajado durante a vida tenha sido para nos visitar, duas vezes, aqui no estado de SP. Ela tinha uma vida como da maioria das mulheres do seu tempo: cuidando da casa e dos filhos, que não eram poucos, 9 ao todo, dos quais meu pai (avô do Felipe) era o mais velho. Mas, ainda assim, era uma pessoa muito curiosa com o mundo. Ela gostava tanto de estudar e de entender sobre outros povos e culturas que imaginem só que um dia ela disse ao pai dela que queria ser freira, pois apenas as freiras podiam estudar por mais tempo na época dela. A maioria das mulheres estudavam apenas até o 9o ano de hoje. Porém, o pai dela a convenceu do contrário,a  ser mãe de ter uma família. Ainda bem pára nós, vocês não acham? Senão, nem eu nem o Felipe existiríamos, já pensaram? Mas ela tinha tanta curiosidade com tudo, que passou esta sementinha para os filhos e , de alguma forma, também para os netos, mesmo para aqueles que ela nem pode conhecer. Assim, quando meu pai,como eu disse o mais velho, quis sair de casa para estudar Física em outra cidade e depois morar em cidades ainda mais longes de Caxias, ela sempre o incentivou. Então, meu pai viajou e estudou muito, até que um dia foi convidado para vir ser professor na Unicamp que na época, era uma Universidade que estava apenas começando. É por isto que o Felipe mora aqui hoje. Engraçado pensar nisto, não é? E  se meu pai tivesse morado sempre em  Caxias, será que vocês nunca teriam conhecido o Felipe, ou será que ele nem existiria?

Mas, por causa disto tudo, meu pai sempre gostou muito de viajar, conhecer outros lugares e outros jeitos de morar e de pensar. Não só ele, mas muitos dos irmãos dele e também dos filhos dos irmãos deles, meus primos , que receberam a mesma sementinha da minha avó (e imagino que de outras pessoas também).  Então, chegamos à aventura que eu queria contar para vocês.

Aconteceu em 1982. Meu pai tinha um irmão que , como ele, também gostava de viajar e acabou indo morar na Amazônia a trabalho. Ele é geólogo e trabalhava, na época, com mineração e busca de quartzo. Meu pai, que tinha este jeito aventureiro, combinou com ele um dia de fazerem uma viagem de barco pelo rio Amazonas. Combinaram para umas férias de julho,quando um barco do meu tio iria viajar levando mantimentos para um acampamento. Eu tinha 12 anos, como já falei, e meu irmão tinha 8 anos (uma pouco menos do que a idade do Rafa hoje). Além de nós, meu pai convidou mais um grande amigo dele para ir com a gente , um cientista (físico também) americano, que morava em Boulder  Colorado – EU (aquela cidade que nós tiramos fotos com a casinha do tempo na neve do blog do Felipe  na nossa viagem do ano passado). Este amigo do meu pai tinha como grande sonho da vida dele conhecer a Amazônia, então ele não recusou o convite que o meu pai fez, aceitou na hora. Vocês devem saber que este é o sonho de muitos americanos e europeus, não? Conhecer a exuberância das nossas matas e dos nossos rios. Bem , então, tudo foi combinado para depois de uma reunião de Ciências (SBPC) que eles teriam naquele ano na cidade de Belém (PA). Ele nos encontrou vindo dos Estados Unidos. Além de nós 4, havia dois tripulantes no barco (um capitão e um outro ajudante).

Se vocês acharam que era um barco 5 estrelas, como estes navios que vemos hoje em dia por aí, não era não! E justamente por isto, foi uma aventura tão grande! Era um barco bem pequeno, cheio de sacos  de comida no chão e nós dormíamos em rede. Tinha banheiro, mas não chuveiro , então os banhos sabe onde eram? No rio, de maiô e sunga, mas apenas quando o barco parava! Foram 5 dias de viagem e parávamos apenas algumas vezes para ir em restaurantes, o resto do tempo comíamos no barco, o ajudante era quem fazia a comida num pequeno fogareiro: arroz, feijão , farofa e acho que carne seca também, que eu não gostava. Quando parávamos, na beira do rio, os restaurantes não tinham carne, só peixe e eu não gostava de peixe, então o máximo que eu comi,  além de arroz com feijão, durante os 5 dias, foi um ovo frito que fizeram para mim num destes restaurantes. Mas, como diz meu pai, eu resisti bravamente! Afinal, era uma aventura que eu nunca mais teria, não é mesmo? Outra coisa engraçada, é que quando barco parava, vinham várias baratas no chão. Eu subia correndo nas redes para elas não passarem perto de mim!

Mas toda aventura tem seus obstáculos, e a nossa não foi diferente. Não sei se vocês repararam, mas eu contei que tinham 4 pessoas no barco, além dos tripulantes ou seja: eu, meu pai, meu irmão e o amigo do meu pai. Se alguém prestou atenção, viu que ficou faltando uma pessoa, o meu tio, o responsável pelo roteiro e nosso guia. Mas vejam só, alguns dias antes da nossa viagem, talvez até mais de uma semana antes, descobrimos que o meu tio tinha sido internado no hospital, pois ele estava pela 8a vez com malária! Vocês sabem o que é malária? Uma doença comum naquela região, mas para a qual não tem vacina, como a vacina da febre amarela. Além disto, estava tendo muita malária numa das regiões pelas quais iríamos passar, uma região produtora da fruta do guaraná. Então, tivemos que ir sem meu tio, apenas visitamos ele no hospital quando passamos por Manaus, e mudamos um pouco o roteiro do barco para não passarmos pela região da doença.

Além disto, no dia de embarcar, quando chegamos no cais, descobrimos que o barco estava em concerto, pois estava com um vazamento!! É isto mesmo: estava entrando água no barco! O capitão disse ao meu pai que tudo seria resolvido em pouco tempo, ainda antes de anoitecer para sairmos naquele mesmo dia. Então ouvi meu pai dizendo:” Mas o Sr tem que me garantir que este barco não vai afundar, pois estou colocando meus dois filhos a bordo dele!”. O capitão disse para meu pai ficar tranquilo e o barco foi concertado antes do anoitecer, quando realmente saímos. Porém, vocês devem imaginar o medo que eu fiquei até ver que não tinha nenhum perigo de verdade e que ele não iria mesmo afundar!

Outra coisa engraçada aconteceu num dia de madrugada. O ajudante havia se esquecido de colocar combustível, ou coisa assim. Meu pai suspeitou que ele tenha pegado no sono depois de uma cervejinha. Mas enfim, o barco desligou de repente lá no meião do rio. Para complicar, tinha um barco bem grande que vinha vindo e estes barcos grandes fazem muita onda. Como nosso barco ligado, ele conseguia vencer as ondas mais facilmente, mas com ele desligado, ficava meio jogado ao balanço das ondas enormes. Ficamos com muito medo, achando que fosse virar. Mas os tripulantes acordaram, teve um certo alvoroço, e conseguiram fazer o barco ligar e sair do meio daquelas ondas, antes que alguma coisa mais grave acontecesse.

Também teve um dia em que o barco balançou muito no meio do rio. E também foi bem no meio da noite. Meu pai ficou várias horas acordado apenas segurando as nossas redes para que elas não balaçassem tanto, pois elas estavam tão agitadas que chegavam a bater nas paredes do barco! Esta parte eu sei porque o meu pai conta para a gente hoje, mas acho que o truque dele de segurar as redes funcionou, pois eu nem acordei naquela noite, nem meu irmão.

Fora isto, vimos muitas coisas legais pelo caminho. As casas das populações ribeirinhas, a linda vegetação perto das margens, aquele riozão enorme, cuja margem às vezes perdíamos de vista, de tão largo que ele é. E ainda por cima tivemos um companheiro de viagem por uma meia-hora: um bixo preguiça que encontramos. O capitão trouxe ele para o barco par anos mostrar, mas depois soltou-o para que ele voltasse para o seu habitat. É muito importante deixarmos a natureza o mais intacta possível quando passamos por estes lugares, certo?

Bem, espero que tenham gostado da nossa aventura. Agora vou contar o roteiro de cidades e rios por onde passamos.

Este foi o roteiro da nossa viagem de 5 dias:

1. Saímos de  Manaus pelo rio Negro

2. O Rio Negro se encontra com o rio Solimões e forma então o rio Amazonas. Seguimos até Maués, onde paramos para almoçar ou dormir, nem me lembro mais…

3. Depois passamos pela cidade de Parintins.

4. A próxima cidade foi Santarém

5. E, por fim, pegamos o rio Tapajós em direção a Altamira.

6. De lá, voltamos para Belém num avião pequeno onde as pessoas levavam até galinha junto com elas.

Bem, então é isto. Esta é uma história sobre dois aventureiros, o avô do Felipe e o tio-avô. Eu e e meu irmão fomos carregados e acabamos contagiados também por esta semente que veio lá da nossa avó ( e de outros avós e antepassados também), tanto que o tio do Felipe (meu irmão) hoje mora bem longe de Campinas também e tem as suas próprias aventuras por lá. E vocês, por que não perguntam a seus pais sobre coisas especias de suas famílias, as sementes que vem de várias gerações? Pode ser mais de uma e podem ser coisas muito simples como uma receita de bolo ou biscoitos que vai passando de geração em geração. Ou uma tradição de festejar alguma festa específica do ano, ou mesmo uma religião ou time de futebol que todos acreditam na família. Estas coisas são muitos especiais, pois contam para gente de onde nós viemos e de quais são as marcas da nossa família. Conversem com seus pais sobre isto e um dia vão poder falar disto para as outras gerações também: seus netos ou bisnetos…!

E para terminar, vou contar um “causo”, uma pequena história , dentro desta outra história. Vocês acreditam em conicidências?  Há alguns meses, quando fomos na casa do avô do Felipe e  estávamos justamente relmebrando esta viagem, pegamos um atlas com mapas da região para tentar lembrar de todas as cidades por onde passamos. A TV estava ligada e estava passando um programa sobre a cidade de Londres na Inglaterra, uma cidade que fica completamente do outro lado do planeta, vocês sabem, não é? Meu pai disse para nós: preciso de uma lupa para ver os nomes destas cidades da Amazônia no Atlas, pois não estou enxergando direito! Então, a Maria Luiza, esposa do meu pai e avó dos meninos buscou uma lupa para ele. E vejam só, assim que ele pegou a lupa, a jornalista da TV, que estava mostrando alguns antiquários em Londres, disse que tinham algumas coisas muito interessantes lá, como uma lupa muito antiga de prata e mostrou a lupa para os expectadores. Então meu pai pegou a lupa  e rimos com a coincidência da Lupa. Mas  assim que ele olhou o mapa e se lembrou de Paritins, a 3a cidade por onde passamos, a jornalista disse que nestes mercado de antiquarios tinham muitos brasileiros trabalhando e que ia entrevistar um segurança que estava a trabalhando lá do antiquário em Londres naquele dia. Ela perguntou para ele de onde ele era e imagem qual foi a resposta? “Parintins” no Estado do Amazonas! Dá pra acreditar em uma coincidência destas? O mestre do filme “Kung fu Panda” diz que não acredita em coincidências e vocês? Ou melhor, e sua família? Pois este assunto pode ter vários pontos de vista, para pesssoas e famílias diferentes…

Bem, abraços a todos e pensem sobre a sminhas perguntas sobre as heranças (ou sementes) de seuas famílias.

Maria Elisa

Las Vegas – Inferno ou Paraíso?

No ano passado, enquanto planejávamos a nossa viagem de carro do Colorado à Califórnia, Las Vegas parecia ser parada obrigatória, pelas distâncias entre as cidades. Eu já tinha passado por lá na minha infância, em uma viagem com roteiro parecido que fiz com meus pais e não me recordava como algo para muito se ver com crianças, muito além das luzes fosforescentes e encantadas da cidade. Então, sugeri pararmos apenas por uma noite para dormirmos e descansarmos antes de seguirmos viagem. No entanto, o Luis não concordou e achou que deveríamos ficar duas noites: primeiro, pois numa viagem longa é sempre muito cansativo parar apenas por uma noite num hotel – já tínhamos acordado sobre isto-; segundo, para darmos uma chance à cidade já que, afinal de contas, é um dos poucos lugares da face da Terra que podem ser vistos com clareza do espaço , pelo clarão provocado por suas luzes alucinadas. Além disto, por que não irmos a um show do Cirque du Soleil, já que esta se tornou a sua cidade anfitriã, com mais de 5 shows fixos em diferentes hotéis? Acabei topando e, enquanto líamos os guias para nos prepararmos para o roteiro geral da viagem, acertando os últimos detalhes, comecei a me interessar pela cidade com genuína curiosidade.

Chamada de Disneylândia dos adultos, como diziam os guias, é um lugar onde com certeza a vontade humana impera nas sutilezas dos caríssimos detalhes de cada hotel e seu cassino. Não era mais nada do que eu havia conhecido, mas sim um sequência de hotéis luxuosíssimos, todos novos, recém-construídos, ou completamente reformados apenas ontem, sempre na cifra da casa dos muitos milhões e bilhões de dólares. Um hotel em homenagem a Paris (com uma réplica da Torre Eiffel metade do tamanho da original); outro em homenagem a Veneza, com canais internos e externos ao hotel, onde se pode passear de gôndola exatamente como na linda cidade italiana; outro hotel saído do Egito, construído em formato de uma gigante pirâmide; as famosas fontes do Hotel Bellagio (este, quem não conheceria? nem que fosse pelo hilariante e assustador filme Se beber não Case); o Hotel Excalibur ou o hotel New York, New York que tem não só uma réplica da ponte de Brooklyn e de vários pontos importantes de Manhatan, como uma montanha russa enorme exatamente na entrada do hotel! Isto, para  falar apenas nos hotéis temáticos, sem falar ainda nos tantos outros ainda mais luxuosos e inspirados em paraísos tropicais, responsáveis por dar à cidade construída em plena deserto uma verdadeira sensação de oasis.

Fiquei pensando: como eu nem sabia disto tudo? Tenho certeza de que muitos dos meus leitores estavam mais avisados do que eu,  mesmo que não necessariamente tenha ido já a Las Vegas alguma vez. Pensei também: passaram-se tantos anos assim? Bem, pensando bem, sim se passaram anos suficientes para muito dinheiro ser empregado em coisas descabidas e suntuosas como todas estas! Este conjunto todo já anunciava realmente ser algo no estilo Disenyland, com sua reprodução do mundo em miniatura. Mas isto não me incomodava muito. Assim como na discussão do filme Cópia Fiel (do post sobre Proust), não sou uma pessoa que se preocupe genuinamente com a questão das cópias. Ainda mais estas descaradas, que não pretendem enganar ninguém. Toda cópia carrega em si um tanto de criação e engenhosidade. Pegar os principais elementos de uma cidade como Paris e juntá-los numa nova construção com limitações de localização e outras necessidades como: ser um hotel, ter um grande cassino, suportar um conjunto de restaurantes e lojas etc., é com certeza um desafio curioso e, para quem gosta de arquitetura, parece  um exercício quase que de quebra-cabeça, muito além de uma simples cópia. O resultado é considerado de gosto duvidoso para alguns, extasiante para outros, mas, sem dúvida, visto de qualquer ângulo, é uma grande obra de realização.

O problema real, que está na base destas construções de parque de diversões, nós já sabemos: não é a ideia da cópia, mas da pasteurização do mundo, ou seja, a oferta da ideia de marketing que pretende convencer você de que realmente basta você estar lá para conhecer tudo, ou para ser feliz e realizar seus sonhos. Não é preciso ir nos originais (que, neste caso, não são apenas originais, mas realmente verdadeiras cidades, inseridas num clima e numa cultura completamente diverso do norte-americano – as cidades, nós sabemos, não são apenas suas construções). Recentemente, por exemplo, ao buscar no google informações sobre a cidade de Bellagio na Itália, para minha surpresa todos os primeiros links referiam-se ao Hotel Bellagio de Las Vegas e não da cidade italiana original!!! Não resta dúvidas de que o hotel é muito mais visitado do que a linda cidade das margens do lago Como. No entanto, se você é imune a esta ideia (seja porque é vitima dela e não se importa ou justamente pelo contrário, pois não trocaria os originais pelas luzes e vê aquilo como algo diferente ou novo em relação às suas referências), é impossível não se sensibilizar pela capacidade de criação e pela engenhosidade de pessoas como o Walt Disney ou de tantos criadores e arquitetos envolvidos em produções como esta.

Seguindo viagem, então, após passearmos pelo maravilhoso reino perdido do Grand Canyon (nada perdido, tão lotado de turistas quanto tantos outros lugares!) seguiríamos para nossa breve parada em Las Vegas. No último dia no Grand Canyon, conheci uma moça de Israel na lavanderia do hotel, enquanto esperava a máquina de secar roupas terminar o seu trabalho (sim, lavando roupas dos meninos que na metade da viagem já estavam quase todas sujas!rsrsrs). Ela me perguntou sobre o funcionamento das máquinas e logo começamos a conversar e trocar experiências sobre as nossas viagens. Ela estava grávida de uns 6 meses e disse que estavam viajando ela e o marido pelos vários parques florestais americanos numa última viagem antes do filho nascer. Disse que gostara do Grand Canyon, mas que nada superava a beleza natural do parque Yosemite, o parque mais querido do país. Contei sobre o nosso roteiro, sobre o desejo de um dos meus filhos de ir até o parque das Sequoias e ela disse que ficou muito triste por não ter conhecido este parque, já que ele ficou fechado quando estiveram lá por conta de uma grande nevasca. Terminamos conversando sobre Las Vegas e ela disse que dormiram lá uma noite apenas e que não gostaram. Resumiu dizendo: “it’s not for us!”. Eu disse que iríamos ao Cirque du Soleil e ela disse que também tinham recomendado a eles , mas não conseguiram ingressos de última hora: talvez isto valesse a pena. Quando a máquina desligou, me despedi dela dizendo que ela estava com certeza prestes a entrar na maior aventura de sua vida: a maternidade. E que seria ainda mais empolgante do que conhecer países estrangeiros ou grandes belezas naturais. Ela se despediu também emocionada e com uma lágrima nos olhos. No dia seguinte, ao andarmos de carro até Las Vegas, fui pensando muito sobre a opinião daquela moça sobre a cidade, embora sem perder a curiosidade. É preciso conhecer para opinar, afinal de contas.

Ao chegarmos lá, acabava de ir embora uma frente fria e estava um calor de quase 40 graus Celsius! Então, a recepção foi realmente “calorosa”. Apesar da minha curiosidade com toda a engenhoca da cidade, tive o bom senso de reservar um hotel fora do circuito dos cassinos: um hotel pequeno, fácil de chegar com o carro, sem estacionamentos gigantescos com manobristas; perto do agito, mas protegido dele. Uma espécie de osais dentro do oasis que era a cidade. Chegamos no início da tarde e já escalei todo mundo para começar o tour pelos hotéis. No primeiro que entramos, Mandalay Bay (cenário de uma série americana, inclusive), já entendemos como era a coisa: muita, muita gente, quase um shopping center com inúmeras lojas e restaurantes, que mesmo sem o cassino já era um complexo de deixar qualquer um meio tonto. Queríamos ir ao aquário que tinha tubarões, inclusive alguns bebês tubarões, e para isto tivemos que cruzar o cassino. Os cassinos são abertos e muitas vezes precisamos passar por eles para chegarmos a outras atrações do hotel. Assim, as crianças podem passar pelo meio, só não podem jogar ou ficar parados perto de alguma roleta ou mesa de jogo. Todos, inclusive o Luis, ficaram bem curiosos com o cassino, querendo ver as pessoas jogar e ver “na real” como as coisas funcionavam. Quantas luzes, Meu Deus! Mas mesmo depois de atravessarmos o hotel, não conseguimos entrar no Aquário, pois ele estava reservado para um festa de encerramento de um congresso. Na frente, mulheres vestidas de sereias recepcionavam os convidados, nos mostrando o tom do estilo Reino da Fantasia da cidade.

Depois de andar mais um tanto, conseguimos sair de lá e, por dentro de uma passarela do próprio hotel, chegar já diretamente dentro do seu vizinho, o hotel do Egito, Luxor. A maioria dos hotéis tem passagens diretas para os seus vizinhos ou para lojas e, às vezes, mesmo passagens subterrâneas por baixo da rua. Sim, Vegas era uma grande obra de engenharia! Os meninos ficaram impressionados com a construção inspirada na pirâmide, até perguntaram por que não nos hospedamos lá assim que chegaram. Mas, logo em seguida, já começaram a reclamar do barulho e do cheiro de cigarro impregnado nos carpetes não tão novos do hotel (este é um dos que estão na categoria dos que devem ser reformados em breve, se quiser sobreviver..). Então, ao chegarmos no hotel Excalibur e tentar passarmos pelo seu cassino, meu filho mais novo tampou os olhos. Eu perguntei: “o que foi? está tudo bem?”. Ao que ele respondeu: “não mãe, tem muita luz e muita gente, não quero mais ver estes cassinos!”. Decidimos, então, voltar ao nosso hotel. Na volta, passando pela rua já de noite, os meninos ficaram muito curiosos com as propagandas com fotos de mulheres nuas e também dos rapazes sendo distribuídas a cada esquina ou forrando o chão da famosa Strip, a avenida dos cassinos da cidade. Contaram para todos os amigos quando voltaram, é claro!

No dia seguinte, fomos ao Pawn, loja de penhores do programa Trato Feito, que os meninos adoravam assistir em casa (antes da viagem!!!). Interesse que eu realmente nunca consegui entender muito bem, mas como o Luis também gostava, achei que devia ser alguma peculiaridade do sexo masculino inacessível ao entendimento das mulheres… Mas lá fui eu de acompanhante.

Bem, curiosidade resolvida, fomos para a torre do hotel Paris. Ninguém estava muito a fim, mas convenceram-se com o argumento de que veríamos a cidade de cima. Então, lá fomos nós. Ao chegar lá, um pequeno deck extremamente sem graça. A vista da cidade de dia com certeza é interessante apenas enquanto revela aquilo que já falamos: ser uma cidade erguida no meio de um árido deserto. Além disto, não há muito mais a ser visto do que o próprio hotel de Paris e sua grande piscina. Assim que descemos, todos os homens da casa pediram pelo amor de Deus para voltarem para o hotel. Ninguém aguentava mais ver aqueles hotéis e muito menos os seus cassinos e todo o burburinho dos turistas barulhentos. Resolvi dar uma folga a eles, deixando que eles voltassem para a piscina do nosso pequeno oasis e decidi eu mesma continuar o roteiro dos hotéis para cessar totalmente minha curiosidade sozinha.

Passei por todos os principais e já fui verificar qual seria o caminho mais curto do estacionamento para o teatro onde seria o Show do Cirque du Soleil que iríamos à noite. Enquanto esperava o monorail par air mais rápido de um hotel para outro  (sim, até um trenzinho para interligar dois hotéis da mesma rede era possível em LV!), perguntei se poderia me sentar ao lado de uma senhora que aguardava no banco da pequena estação suspensa. Ela foi muito educada e disse com certa vergonha que sim, que estava apenas de olho na filha bêbada ao lado com seus amigos. Eram 4 da tarde e a moça estava realmente com cara de quem estava bêbada desde o dia anterior, falando animadamente com sua amiga e outros dois amigos. Logo a menina chamou carinhosamente a mãe e ela se levantou dizendo para mim “que vergonha ela me faz passar!” Aquela cena pareceu quase que surreal! Alguém bêbado nos seus 20 e poucos anos de idade no meio da tarde não pareceria bizarro em lugar nenhum do mundo, muito menos em LV, mas com a mãe ao lado cuidando da filha e reclamando da situação?! Sim, aquilo era muito esquisito! Se ela não aprovava, por que estava lá do lado, provavelmente ainda pagando as contas da filha e seus amigos? E se ela aprovava, em algum grau, por que ficar reclamando e sentindo vergonha, se , afinal, estávamos em LV, o paraíso da falta de limites para os americanos? Mas esta cena, com certeza revelava muito do jeito americano de ser: uma sociedade que em muitos dos seus estados é bastante conservadora e puritana. Mas que, apesar de tudo, ama Las Vegas e permite que tudo aconteça nesta cidade, ainda que seja  sob um certo sentimento de vergonha.

Após meu tour, satisfeita a minha curiosidade de engenheira/arquiteta, conforme fui voltando para o nosso hotel, fui sentindo um certo cansaço, para não dizer um certo enjoo por tudo aquilo. Algo que já estava no ar e que as crianças e o Luis já haviam sentido e se cansado de sentir. Fiquei me indagando sobre este sentimento. Não era nenhum puritanismo, pois sinceramente não sou deste tipo. Gosto de pensar como o Contardo Caligaris, que em seu livro “A Mulher de Vermelho e Branco”, diz (em nome do personagem principal) que sentia uma estranha sensação de prazer no “inferninho” decadente de São Paulo, por saber que em algum território humano é possível a liberdade em sua plenitude, a falta de limites e de obediência às regras estabelecidas. Sim, isto não me incomodava, cada um sabe de sua vida e de sua forma de se relacionar com os seus próprios desejos: seja uma velhinha jogando Bingo na esquina de casa no Brasil ou uma velhinha jogando no cassino de Vegas; ou tantas outras formas de diversão que a cidade apresenta ou parece oferecer, como vocês bem devem imaginar. Também não era a questão da réplica de seus edifícios suntuosos, pois também não sou puritanista neste aspecto, como eu já disse. Mas a grande questão, aos poucos, foi ficando clara na sensação de vazio que eu fui sentindo aliada ao cansaço. Este vazio era nada menos do que o vazio do American Way expresso de forma tão primorosa nesta cidade. A cidade dos excessos não deixa espaços vazios para a sua imaginação. Tudo o que poderia ser imaginado, ou sonhado, está ali, dado, explícito, em tamanho Oversize. É a diversão vendida em forma de consumo. Um restaurante para todos os gostos, um show para todos os gostos, um acompanhante para todos os gostos, se alguém quiser ou pedir! E a ideia que se vende, não é mesmo muito diferente da ideia do Walt Disney sobre a Disneyland: “The place were Dreams come true”. Mesmo lá no lugar onde as pessoas querem sair do seu puritanismo de todo o dia e fugir para o inesperado, é o consumo que dita as regras e diz como fazê-lo.

A grande questão é que o desejo aqui, ou o sonho, não são sonhos reais , mas sonhos criados pela propaganda e pelas ofertas reconhecidas. Os famosos “sonhos de consumo”. Nesta sociedade tão magnifica da engenharia, tudo tem que ser trabalhado no seu limite e para tudo é preciso de um enorme arsenal . Se você quer se divertir como nunca, só existe para os americanos um lugar possível e este lugar é Las Vegas. Você precisa de “tudo aquilo” para se divertir ou para ser feliz. No entanto, para algumas pessoas, este excesso ao invés de preencher, delata um vazio existencial, ou seja , deixa claro que no fundo, não há mais do que isto. Na base da ideia de que você precisa daquilo para ser feliz, está também a ideia de que ser feliz (ou se divertir – estas coisas se confundem bem na mídia) é ter tudo aquilo que está sendo oferecido. Quando no fundo, sabemos que não é. Velhinhos com cara de abandonados e meio deprimidos gastando seu dinheirinho na roleta, mulheres mais velhas vestidas de forma sensual felizes por poderem pagar pelo divertimento, mesmo que seja por uma simples foto de uma juventude reconquistada na cidade ao lado de todo o glamour. Sabemos que a Felicidade é bem mais do que isto. Como sabemos também, ela precisa de muito menos do que isto para se realizar! E, com certeza, não é preciso ir para Las Vegas ou à Disneylândia para encontrá-la!*

À noite, fomos ao show Mystère, do Cirque du Soleil. Pura magia e encantamento! Realmente de encher os olhos e mexer com a sensibilidade! Quando os meninos perguntaram como os bailarinos ou trapezistas conseguiam as tais façanhas, a nossa resposta era sempre a mesma: “muito treino e dedicação. Uma vida inteira dedicada a este trabalho!” Sim, o trabalho deste circo chega tão perto da perfeição, graças aos mesmos princípios de engenhosidade e criação da cidade, ou da cultura do país. É sempre a força da grana que ergue e destrói coisas belas. Mesmo o Cirque du Soleil sendo canadense, sabemos que ele transpira esta engenhosidade e este desejo de perfeição e de grandiosidade do seu país vizinho. Afinal, são as diversas faces da mesma moeda de uma cultura de um país tão complexo com os estados unidos.

Então: Inferno ou Paraíso? Se você estava esperando esta resposta, meu querido leitor, infelizmente terei que decepcioná-lo, direi apenas: nem um, nem outro;  ou, ainda: os dois ao mesmo tempo. Se você tem curiosidade pelo mundo e puder passar por lá em alguma viagem, é um lugar a mais a ser conhecido: embora com certeza seja um lugar sui generis. E, se você gosta dos tipos de diversão que a cidade oferece, poderá ter a sua na medida em que desejar. Mas, acima de tudo, saiba que os seus sonhos não estão esperando você em lugar algum, muito menos em prateleiras de lojas ou parques. Os sonhos verdadeiros você é que terá que construir, por conta da sua própria criatividade e engenhosidade, conquistando-os com seu próprio esforço e empenho. Jamais se iluda do contrário! Aproveitando a oportunidade, faço um pedido: que as pessoas pensem duas vezes antes de usar a expressão “Aquilo que não tem preço” para designar coisas que trazem alegria, felicidade ou momentos especiais e significativos na vida. Ao meu ver, não existe expressão mais perversa do que esta! Ao ouvi-la, a primeira coisa na qual pensamos é justamente no maldito cartão de crédito, sua propaganda e em tudo aquilo que ele compra que acompanha a cena daquilo que não se compra (a roupa, o carro, ou todos os outros itens coadjovantes, mas nada tão coadjovantes assim- afinal, senão não seria uma propaganda de cartão de crédito!). Ao falar daquilo que não tem preço usando o preço como referência, é justamente o contrário que fazemos, ou seja, colocamos o valor do dinheiro (ou do consumo) num posto mais alto numa escala de valores – é a ele que rendemos a nossa felicidade. E, será que é disto que realmente estamos precisando?

Fim.

Fotos de Las Vegas e do Vale da Morte e Parque das Sequoias que fomos depois:

Incident in the Middle of Nowhere – Bluff, Utah

Após uma longa temporada cuidando do meu jardim (e estou falando de fato, não apenas metaforicamente), volto ao relato da viagem de Abril do ano passado e seus mais de 3000 km pelo velho-oeste norte-americano – do centro do país rumo à Califórnia. Em viagens longas como esta, estamos jogados ao destino, de certa forma. Como eu já disse a respeito de NYC, por mais que o planejamento seja cansativo e extenso, sempre existe (infelizmente, ou felizmente!) lugar para o inesperado.

Ao planejar a viagem, para entrar no “clima” do cenário que nos esperava, além de ver muitas fotos e álbuns da minha infância, assistimos a alguns filmes que se passam em lugares pelos quais passaríamos.

Resgatamos com os meninos um pequeno filme “A Era do Gelo” que fala sobre o Grand Canyon e como ele foi criado por um “ser de infinita sabedoria”, rsrsrs. É uma pérola sobre o milagre da Natureza, que partilho com vocês aqui para que possam dar muitas risadas, sobretudo quem gosta do hilariante Sid, personagem principal desta sequencia de filmes:

Assistimos também com os meninos o já clássico filme “Carros” que fala de lugares perdidos e esquecidos da famosa Rota 66, abandonada por tanto tempo pelos americanos após o surgimento das autoestradas mais rápidas e diretas paralelas a esta, como a rota I40, já que passaríamos por ambas. O diretor e roteirista confessa que sua motivação para o filme surgiu após uma longa viagem cruzando os EU de carro com seus filhos. Segundo ele, foi uma viagem de férias merecida à família toda após o árduo e intenso trabalho de Toy Story 1Toy Story 2 e sua consequente ausência constante de casa. No filme, a chegada do carro de corrida McQuin desperta o interesse das pessoas para a velha cidade de “Radiator Springs” (inspirada pela cidade de Peach Springs no meio do trecho da Rota 66 pelo qual passaríamos também), assim como na vida real sabemos que este filme despertou o olhar do mundo novamente para esta estrada, trazendo inclusive o turismo de volta a muitos dos vilarejos vizinhos à ela que estavam realmente esquecidos no tempo.

Eu e o Luis também assistimos ao filme “Bagda Café”. Para quem ainda não o assistiu, o nome é quase que uma brincadeira. Passando por um deserto (um deserto que não está em Bagdá, mas sim na Califórnia, próximo à cidade de Bagdá), uma alemã de meia idade, viajando em turismo com seu marido, é deixada por ele no meio da estrada exatamente “in the middle of nowhere”. Bem, na verdade, a estrada está numa rota turística, como a personagem deixa claro minutos antes ao falar no telefone com alguém da Alemanha, contando que estavam vindo da Disneylandia (LA) e estavam em direção a Palm Springs e Grand Canyon. Porém, as estradas desta parte dos Estados Unidos, por todo o seu cenário árido e pelas longas distâncias entre as cidades, dão mesmo a sensação de estarmos perdidos no meio do nada. E foi exatamente num lugar assim que ela desceu do carro após um desentendimento com seu marido. Não fica claro no filme o motivo do desentendimento, mas a câmera é cruel e mostra a senhora alemã (vestida num tailler azul, sapato de saltinho e chapéu de pena) descendo do carro com sua mala e andando pela estrada quente do sol meio sem destino até chegar ao lugar mais próximo das redondezas: o Bagdá Café! – um café mais que abandonado num daqueles postos antigos dos EUA . A partir daí, não vou contar a história para não perder a graça, assistam o filme por conta própria! Mas o que posso dizer é que o desenrolar dos acontecimentos tece uma história não só inusitada como deliciosa sobre o encontro de diferenças culturais e sobre pessoas que quando chegam num ambiente hostil com um novo olhar, um olhar estrangeiro, mas de coragem e generosidade para aquilo que lhes é diverso, conseguem transformar até mesmo deserto em jardim, recriando completamente as relações tão aridamente estabelecidas no lugar por velhos hábitos que se viciam e se desgastam com o passar do tempo. Com certeza vale a pena!

Pois bem, após assistir ao filme, no dia de sair de casa , já no carro rumo ao Aeroporto, o Luis não se conteve à piada e disse aos meninos: “É bom a mamãe se comportar, senão vamos deixá-la com sua malinha no Bagdá Café”! Rindo muito, ao explicar aos meninos o que era o “Bagdá Café”, já que eles não tinham assistido ao filme, eu disse que na verdade não havia este risco, pois, além de ter certeza de que todos se comportariam bem durante a viagem (inclusive os homens da casa!), esta estrada havia sido tirada do nosso roteiro original, após inserirmos o parque das Sequoias no mesmo. Ufa! Os meninos riram, sentindo-se aliviados… E eu também! Pelo menos, não dá para negar que o humor dá o tom desta família! Rsrsrs.

O nosso roteiro era extenso e um pouco audacioso para tão pouco tempo. Então, o Luis pediu que eu o ajudasse na direção do carro, por tantos quilômetros a serem percorridos. Porém, assim que chegamos, me dei conta de que eu nunca tinha dirigido um carro automático e fiquei bastante receosa na minha primeira tentativa. Em teoria, deveria ser mais fácil, porém, nosso corpo e sua tendência de fixar hábitos repetidos diariamente pode ser bem traiçoeiro, muitas vezes.  No entanto, após um machucado no cotovelo do Luis ter se transformado rapidamente em uma infecção(bursite), não teve jeito: lá pelo quinto dia de viagem tive que assumir a direção, sob a alegação dele de que eu já cruzara os Andes dirigindo do Chile para a Argentina, o que poderia ser mais desafiador? Sim, sim, mestre! E lá fui eu. Estávamos saindo do Parque Nacional Mesa Verde rumo ao Parque Navajo Monument Valley. A viagem não deveria durar mais do que 3 ou 4 horas, com menos de 250 km. No entanto, quantas mudanças de estrada! Tive que me concentrar um bocado para deixar o pé esquerdo quietinho sem querer entrar na dança em cada alteração de velocidade e percurso. Apesar do desafio – que para muitos leitores habituados pode parecer engraçado! – consegui ir relaxando com o tempo e definitivamente ir me esquecendo desta parte do meu corpo que fica tão longe da cabeça!

Durante duas horas, dirigi super bem (modéstia à parte! rsrsrs)! Quando estava super confortável, o Luis ainda reclamou que eu podia ir mais rápido! Dá pra acreditar? Eu respondi que estava sempre obedecendo ao limite de velocidade e que tinham 2 carros atrás de mim a uma relativa distância e que não tinham tentado nem uma vez me ultrapassar, então a velocidade deveria estar OK. Logo depois disto, eu sugeri que ele tirasse umas fotos pois o cenário era inacreditável, meio lunar, com umas pedras avermelhadas; já anunciando a aproximação do nosso destino final, o esperado e incrível Monument Valley (um lugar que com certeza todos já viram em propaganda da Marlboro – uma espécie de ícone dos EUA). Então, ao resolver diminuir a velocidade para a foto sair melhor, meio sem pensar, o meu pé esquerdo, que esteve durante 2 horas super comportado, teve um lapso de memória corporal e resolveu entrar em ação, pisando bruscamente no freio. Quando percebi, fiquei com meu corpo super confuso sem saber o que fazer, só conseguia gritar “ai meu Deu, ai meu Deus!” E todo mundo gritando no carro ao mesmo tempo. Então, o pior aconteceu! A moça do carro de trás bateu em nós. Ela assumiu depois que estava assistindo a um filme enquanto dirigia, por isto não viu a freada e não conseguiu parar a tempo! Um tanto bizarro, não é?Ela estava bem , apenas com o tornozelo doendo, os meninos estavam chorando e o Luis com cara de “what the F. happened?”! Rsrsrs. Tentei acalmá-los, sem ter a mínima ideia de onde estávamos. Depois de uns 15 minutos, começaram a chegar pessoas e, então, não parava mais. Dois carros, guincho, ambulância para a moça, primeiros socorros e o Xerife da cidade vizinha.

As pessoas foram extremamente atenciosas e preocupadas, ainda mais quando souberam que éramos de longe e estávamos a passeio. A moça dos primeiros socorros fez mil perguntas e testes para ver se os meninos estavam bem (toda a cena eu traduzindo para eles). Ela sugeriu chamar outra ambulância para levá-los ao hospital apenas para checar se tudo estava realmente bem, ainda mais que estávamos viajando. Por fim, resolvemos que o Luis iria junto com o carro de guincho até o pátio, para garantir que estaria bem fechado com nossas coisas e compras e eu iria para o hospital com o meninos (o mais próximo era numa cidade a meia hora dali, chamada Blanding). Segundo ela nos disse, estávamos “In the midle of nowere”, num vilarejo chamado Bluff que praticamente só tinha um café (The twin Rocks cafe -nomeado segundo uma formação rochosa que tem duas pedras gêmeas logo atrás). Ela nos alertou que a ambulância não nos traria de volta, teríamos que achar um meio de voltar, já que o nosso carro não andava, e que o Twin Rocks Café talvez fosse o lugar para onde eu deveria ligar depois para tentar falar com o Luis quando estivesse liberada do hospital. Bem, no final, àquela altura, como nos reencontrarmos depois parecia ser apenas um detalhe!

Depois de responder algumas perguntas ao Xerife e ter que ouvir ele falando que era um lugar muito curioso para um acidente (rsrs!), chegou a ambulância e mais vários dos mesmos testes de mais 3 paramédicos: apalpação na coluna , cabeça, estômago e pescoço dos meninos para ver se doía, testes de visão e tontura. E eu traduzindo dos dois lados. Colocaram um colar no menor para imobilizar a sua coluna, por causa da batida (ele reclamava de dor na cabeça e no pescoço) e o colocaram na maca. Ao apalparem o maior, ele disse que doía um pouco na coluna. Quando perguntado, numa escala de 1 a 10 ele respondeu: 1,5! “Eu digo, o quê???” E respondi “2” para a pergunta em inglês, tentando diminuir a vergonha. Rsrsrs. Então veio a conclusão: “vamos imobilizá-lo também!”. Colocaram ele num colar, numa maca com uns 10 cintos e faixas prendendo-o e ainda decidiram colocar oxigênio no seu nariz , por causa de um enjoo que ele teve na hora da batida. Foi realmente uma cena inacreditável: eu na ambulância com os dois na maca imóveis! Expliquei a eles em português que estava tudo bem, que os americanos eram apenas exagerados e queriam ter certeza absoluta de que tudo estava bem, para eles terem calma. Eles se comportaram maravilhosamente bem: não choraram, não reclamaram, nada, apenas ficaram com cara de estarem um pouco desconfortáveis e assustados.

Durante a viagem, quando menos percebi, lá estava eu batendo papo com o pessoal da ambulância . Contei o nosso roteiro de viagem e eles disseram que o Johnny Depp estava filmando “The Lone Ranger” em Monument valley, para onde iríamos e que talvez a equipe dele ainda estivesse no mesmo hotel que iríamos ficar, dentro do parque. Pensei logo: “que pena se não pudermos ir para lá!” Também nos contaram que umas duas vezes por ano a Marlboro vinha para lá fazer comerciais e como há sempre um certo risco de acidentes, por conta dos cavalos, eles sempre ficavam próximos às filmagens com a ambulância de plantão.  A cada 5 minutos, enquanto conversávamos, eles faziam sinais de “jóia” para os meninos, para confirmarem que estava tudo bem com eles. Depois de muita conversa chegamos ao hospital e nova sessão de traduções e apalpações. Então, passados apenas uns 20 min, soltaram os meninos das amarras e disseram que eles estavam liberados e não seria necessário nenhum exame, talvez apenas analgésico no dia seguinte caso tivessem dor por causa do impacto. Se houvesse qualquer alteração no quadro, eu deveria voltar. Dá para acreditar?!!! Depois de tanta firula, nem um raio X e nenhuma tomografia? Parecia piada! Com certeza é um ótimo retrato de algumas das contradições dos americanos e da sua medicina! O medo é tanto de sofrer um processo, que eles não querem correr o menor risco de deixar passar algum sinal na ambulância. No entanto, porta a dentro do hospital, nem tudo é tão rigoroso assim. Eu já tinha passado mal outra vez nos Estados Unidos e o médico que me atendeu fez um diagnóstico de diverticulite (uma doença relativamente séria) sem ter feito um único exame de imagem!  (provavelmente por conta do preço dos exames e do fato de ser atendimento de emergência de seguro – neste caso, ao chegar no Brasil , fiz o exame apropriado e não havia nada de errado). Mas, enfim, logo chegou o Luis no hospital de carona com o Xerife. E não é que ele ficou amigo do Xerife da cidade?! Pois é, disse que as pessoas da cidade foram incríveis e que no final teve até mais de uma pessoa se oferecendo para levá-lo até o hospital na cidade vizinha.

Em seguida, ainda no hospital, tivemos que enfrentar uma sessão de liga-liga para o seguro de saúde e para a Hertz para pedir outro carro etc. A enfermeira-chefe de plantão foi incrível, elogiou muito o comportamento dos meninos e trouxe vários papéis para eles desenharem, latinhas de refri e ainda nos ajudou a reservar um motel “Super 8” na cidade e nos deu ela mesma carona até lá no seu próprio carro! Uma graça! Ainda se desculpou pela bagunça do carro, dizendo que ela tinha filhos pequenos também! Bem, quem conhece os americanos sabe como são os carros deles por dentro. Rsrsrs. (Pelo menos é esta desculpa que eu sempre uso quando o Luis reclama da bagunça do meu carro por dentro. Digo que é o meu lado americano!). Não pudemos dormir no hotel que eu tinha tido tanto capricho em reservar dentro do parque! Tínhamos que esperar um novo carro da Hertz chegar de uma cidade a 3 horas de lá e já eram 7 da noite! Mas, no final, tudo deu certo!

Além da piada do Xerife sobre o lugar ser um lugar curioso para um acidente, o Luis ainda disse depois, tirando o clássico sarro de mulheres na direção: “num raio de 100 km só existiam duas mulheres na estrada e elas conseguiram bater, não é incrível?!” Hahaha! Como não rir?! E a segunda piada que veio, logo em seguida, vocês bem que podem imaginar: “dada a situação, meninos, acho que a mamãe bem está merecendo ser deixada em Bagdá Café (ou Bluff!), o que vocês acham?”.

Piadas à parte, fiquei me indagando a noite toda se as tais jornadas de longa distância que eu sempre defendi realmente eram a melhor coisa a ser feita com crianças pequenas. Pensei que deveria ter ido apenas 1 semana para algum resort, garantindo diversão fácil e segura para todos. E assim fui dormir. Não fosse o Luis realmente me dizer que estava tudo bem, e que estas coisas acontecem, eu teria dormido com a cabeça dentro de um buraco. E este tal Monument Valley, afinal, valeria tanto a pena assim?

No dia seguinte, acordamos mais animados, após uma ótima noite de sono e um carro novo na garagem. Tínhamos que buscar nossas coisas na cidade vinha de Bluff. Olhando com calma, a cidade era simplesmente uma graça, mas deveria ser realmente menor do que “Radiator Springs” de Carros! Mesmo sendo pequena , nos perdemos e demoramos um pouco para achar o pátio da Nancy, a dona do Guincho. O Luis já tinha dito que ela era uma figura: morava com a mãe e com a irmã e elas tinham, além do guincho e um pátio, uma pequena loja de peças de carro que parecia não ser usada há anos – de tão empoeirada-, um pequeno motel, um café e um posto de gasolina alla “Carros” dos tempos da Route 66. Ela foi extremamente simpática com a gente, nos contou que tinha um filho que estudou português por puro interesse e foi morar depois em Portugal para praticar. Nos apresentou seus dois cães, que eram lindos, e ainda nos deu um mapa da região com uma ótima dica de um parque perto do nosso destino, “The Goose Neck”, que tem umas 4 curvas inacreditáveis de rio! Por fim, foi realmente muito especial conhecer aquela pessoa naquele lugar tão pitoresco!

Gostamos tanto do lugar que o Luis e os meninos chegaram à conclusão de que era uma cidadezinha charmosa demais para me abandonar, dado o meu pecado! “Vamos aguardar o que acontece nas estradas da Califórnia”, eles disseram! Então, lá fomos nós para o tal Monument Valley. Realmente um dos cenários mais inacreditáveis que eu já vi! O hotel onde iríamos ficar tinha realmente uma vista fantástica e fiquei com grande remorso. Nem sinal do Johnny Depp ou sua equipe; já deviam ter ido embora àquela altura! Mas, mesmo assim, pudemos almoçar no restaurante do hotel com um lindo visual pelas janelas e fizemos uma tour de carro pelo parque muito , muito lindo!

Em seguida, seguimos para o fantástico Grand Canyon, onde com certeza também só poderíamos ter chegado de carro. Além dos cenários serem realmente espetaculares, o mais incrível era o quanto eles tinham mudado, desde que saímos das montanhas rochosas, ainda com muita neve, passando depois por cenários mais desérticos, até chegar lá, onde definitivamente o cenário era mais diferente ainda! Sentir a força da natureza ao longo de todo este percurso foi algo quase mágico. Então, rapidamente fui revendo novamente a minha opinião e voltando àquilo que sempre acreditei. Tantas famílias estrangeiras estavam viajando pelos lindos parques florestais americanos, com duas ou três crianças, muitas até menores do que as nossas, todos fazendo variantes do nosso roteiro, mas sempre de carro alugado, que me pareceu que os meus medos realmente não faziam muito sentido. Os perigos estão em todos os lugares. Ficarmos nos protegendo deles o tempo todo é como deixar de viver.

Quando voltamos ao Brasil, a batida de carro foi com certeza a principal novidade dos meninos aos amigos da turma. Também falaram dos parques, cada um do seu preferido, levaram informações e fotos sobre alguns deles para a escola que geraram discussões entre os colegas. Uma das professoras me perguntou: “vocês foram mesmo à Disney no final da viagem? Ele nem comentou em sala de aula sobre isto!” Então tive certeza, o que torna a experiência rica, são justamente os desvios, e tudo o que acontece de inusitado na sua superação. Conhecer um pouco mais sobre as pessoas e o jeito de ser do americano nos lugares esquecidos do faroeste, ficar amigo do Xerife, o acolhimento das pessoas – mesmo num país que sempre dizemos ser tão individualista-, os lindos cenários, a mudança gradativa de paisagens e aquela pequena e charmosa cidade, cujo nome, Bluff, jamais sairá do nosso vocabulário e repertório de histórias familiares, com certeza foram uma das melhores coisas que nos aconteceram! É preciso coragem, mas vale a pena!

Fotos de Antes do “acontecido”:

Fotos de depois:

O Milagre da Fragilidade – Um Elogio à Generosidade Humana

Mais um post começando com uma citação…: desta vez, de um pequeno relato que eu adoro! Voltei a ele recentemente, ao receber de volta o livro do qual faz parte, que estava emprestado a uma amiga querida em busca de informações sobre alimentos fortalecedores do sistema imunológico. Porém, trata-se de um assunto eterno, que cabe bem em qualquer hora, sobretudo – mas não só – nos dias próximos ao Natal.

Sobre o livro – Anticâncer -: hoje em dia, todo mundo já passou pela experiência do Câncer (seja por familiares ou por experiência própria) – doença que há apenas algumas décadas atrás parecia-se mais com Voldemort (o personagem do filme Harry Potter chamado de “Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado“) de tanto pavor que o seu nome causava entre as pessoas. Felizmente, a medicina deu seus passos, além das pessoas terem se acostumado à ideia de que a vida é frágil em sua essência, mas que nem por isto não pode ser defendida com unhas e dentes e todas as forças do ser humano. A visão de que temos mais ao alcance de nós também aumentou: a alimentação e hábitos de estilo de vida que pareciam acessórios tornaram-se  importantes e cruciais não só para a prevenção, como também para o tratamento de muitas doenças. Este livro vale a pena por mostrar um pouco de todas estas questões, mas, acima de tudo, por ser um livro que fala da experiência humana de superação. O trecho que estou citando fala de um momento em que o autor ajuda uma senhora instantes antes dele próprio entrar para uma cirurgia de tumor no cérebro: a experiência é simples, mas seu relato é poético e o assunto é muito caro a todos nós humanos.

“Eu me lembro de um desses acontecimentos insignificantes que nos mergulham sem aviso prévio na experiência da fragilidade da vida e do milagre da conexão com outros mortais, nossos semelhantes. Foi um breve encontro em um estacionamento, na véspera da minha primeira operação, um episódio minúsculo que um olhar exterior qualificaria de paliativo, mas que permanece marcado com o selo de uma revelação. Eu tinha chegado a Nova York de carro com Ana e parado no estacionamento do hospital. Estava ali tomando ar durante meus últimos minutos de liberdade anteriores à minha admissão, aos testes, à sala de cirurgia, à operação…Avistei uma senhora de idade saindo visivelmente de uma internação hospitalar, sozinha, sem ajuda. Carregando uma bolsa, ela se deslocava com muletas e não conseguia subir no carro. Olhei para ela, surpreso que a tivessem deixado ir embora naquele estado. Ela reparou em mim, e eu vi no seu olhar que ela não esperava nada de mim. Nada. Estamos em Nova York, é cada um por si. Então eu me senti empurrado para ela, por conta de um impulso de uma força surpreendente, um impulso originário da minha condição de doente. Não era compaixão, era uma fraternidade quase visceral: eu me sentia infinitamente próximo, da mesma matéria que aquela mulher que precisava de ajuda e não pedia. Botei sua bolsa na mala, sentei no volante para tirar o carro da vaga, segurei-a enquanto ela se instalava no assento, fechei a porta do carro sorrindo para ela. Durante aqueles poucos minutos, ela não estivera sozinha. Eu estava feliz por poder lhe prestar aquela minúscula ajuda. Na verdade, era ela que me prestava ajuda ao precisar de mim justamente naquele momento, permitindo que eu sentisse minha comunidade de condição humana. Foi o que ela me ofereceu, e eu lhe dei algo em troca. Revejo ainda seus olhos, nos quais eu despertei uma espécie de confiança nos seres e nas coisas, a ideia de que a vida é maravilhosa por ter posto no seu caminho aquele apoio inesperado. Nós mal nos falamos, mas eu estou persuadido de que ela, assim como eu, teve a certeza de uma harmonia particular.  Este encontro me aqueceu o coração. Nós, os seres frágeis, podíamos nos sustentar uns aos outros, e nos sorrir. Entrei em cirurgia em paz.” (Biblio.: Servan-Schreiber, David.  Anticâncer – Previnir e vencer usando nossas defesas naturais. Rio de Janeiro , RJ: Editora OBJETIVA, 2008; 39-40)

Acabo de lembrar-me também de um trecho que acho muito curioso do personagem Valmont no livro Les Liaisons Dangereuses de Chaderlos de Laclos (“As Ligações Perigosas”, que muitos devem conhecer pela sua versão mais conhecida em  filme, onde este personagem é interpretado por  John Malkovich). A cena refere-se a quando Valmont vai a uma vilarejo de pessoas humildes para realizar um ato de caridade aos mais necessitados. Seu objetivo principal é puramente mundano: impressionar a bela, inocente e devota Madame de Tourvel (interpretada pela  atriz Michelle Pfeiffer neste mesmo filme) que ele desejava arduamente conquistar (não só por desejo, mas por uma aposta realizada com Marquise de Merteuil, importante e poderosa dama da mesma corte francesa). Após encenar o teatro de bom caridoso com os pobres locais do vilarejo, ele relata a sensação extraordinária de prazer que sentiu na realização do “ato de ajuda ao próximo”, algo que jamais imaginaria possível, dado seu carácter assumidamente egoísta e auto-centrado. Diz, ironicamente, que se soubesse desta sensação antes, teria começado a praticar a caridade bem  mais cedo em sua vida. A cena é engraçada, mas delata algo tão íntimo da condição humana! A carta em que aparece esta passagem do livro é sensacional (vale dizer que o livro, uma pérola de 1782,  é todo escrito em forma de cartas entre os seus personagens).  No caso de Valmont, o prazer do ato é imediato e parece vir diretamente do sentimento de gratidão retribuído a ele com diversos agradecimentos fervorosos da família ajudada. Já o médico David  (do texto acima), fala do sentimento de uma forma mais profunda: de uma forma de conexão humana com seus semelhantes. Embora é possível que Valmont também estivesse aprendendo a sentir esta conexão, já que o livro é um clássico pois fala justamente de uma trajetória de transformação (enquanto crítica de uma nobreza mundana e fútil do período pré-revolução francesa que vive num vazio de valores humanos). E hoje em dia,em que situação vivemos? A indiferença das ruas de NY (que poderia ser outra cidade grande qualquer do mundo) pode ser real, assim como a indiferença dos muitos médicos “mercantilistas” frente ao sofrimento dos seus pacientes, mas gosto de acreditar que também é real a existência de muitas pessoas que estão prontas a ajudar seus semelhantes, não apenas em tragédias de tsunamis ou furacões (tão badaladas pela mídia), como também em situações bem mais singelas como aquela que este médico relatou em seu livro.

O sentimento do qual estes dois personagens falam, todos nós já experienciamos, de alguma forma. São momentos quase que de epifania, parecidos também com o momento descrito no conto da “Galinha” de Clarice Lispector, quando uma família, ao correr atrás de sua galinha para matá-la (e servi-la no jantar,obviamente!), tem um momento de luz e todos percebem sua existência e se conectam a ela de forma a desistirem to ato de crueldade (neste mesmo conto, se não me falha a memória, “depois que a banda passa”, tudo retorna ao seu lugar e ela acaba mesmo na mesa da família, mas isto não diminui a descrição do momento anterior, nem a grandeza de Clarice Lispector, com certeza uma das escritoras mais sensíveis a estes lampejos da existência humana). Estes momentos, por sinal, trazem sentimentos não tão distantes dos sentimentos do artista em seu ateliê (ou Matisse na sua relação com o seu Jardim-Ateliê e sua arte – como escrevi no meu primeiro post do blog – “A inspiração do Jardim”).

Talvez a questão seja ampliar este sentimento, que todos já conheceram algum dia (uns mais , outros menos…). Não no tamanho da generosidade, mas na sua constância. Não estou falando de mover montanhas, mas de ajudar alguém que passa na rua, de dar a passagem ao carro que quer entrar na avenida, dar um sorriso e cumprimentar um estranho atrás de você na fila ou um varredor na rua, respeitar os companheiros do dia-a-dia, os que estão acima, mas também, e principalmente, os que estão abaixo de você na hierarquia de trabalho, ou enxergar o sofrimento de quem está ao lado e fazer um pequeno gesto para amenizá-lo (algo tão simples como gastar alguns minutos para ligar para um amigo querido que sabemos que está passando por tempos ruins, algo que muitas vezes deixamos de fazer por preguiça ou medo de não saber o que dizer). Uma coisa é certa, uma vez que conseguirmos entender isto, é algo do qual não poderemos mais nos desconectar. E não é pela gratidão que recebemos, mas, como diz o autor do texto citado, simplesmente pelo prazer do compartilhamento da sensação de que somos iguais no mundo – dentro de nossas diferenças, é claro! – na nossa condição de fragilidade (mais cedo ou mais tarde experienciada!).

Um dia destes à noite, esperando os homens da casa voltarem do jogo da final do São Paulo no Morumbi, assisti justamente a um pedaço de um concerto em NY em prol dos afetados pelo furacão Sandy. Cada apresentador de uma banda dava o seu recado, falava de algumas pessoas que fizeram a diferença na hora da dificuldade ou nos dias que se seguiram e faziam a sua propaganda para que as pessoas ajudassem na causa com doações. Um deles disse uma coisa que achei muito engraçada, pois eu já tinha começado a escrever este post justamente no dia anterior. O comentário dele foi: “Send your help, and beleive it: this will make you feel high!” “Feel high” é uma gíria para a sensação de sentir-se “embriagado”, ou naquele estado de quem experimentou alguma bebida ou droga. Lembrei-me na hora de uma música do cantor John Denver chamada “Rocky mountain High” (escrita quando ele se mudou para a cidade de Aspen no Colorado) , que trouxe uma grande controvérsia justamente pelo uso deste termo para designar a vista das montanhas rochosas. Ele teria se defendido dizendo que não pretendeu fazer nenhuma referência implícita às drogas, mas simplesmente a um estado de graça, ou de proximidade com Deus, que sentimos ao presenciar a beleza das montanhas rochosas. Anos mais tarde, a música se tornaria uma das músicas oficiais do estado do Colorado. No final, talvez todos queiram sentir a mesma coisa: o drogado da esquina da nossa rua, a senhora beata da outra esquina, que ajuda os mais necessitados, o viajante que busca paisagens enebriantes da natureza ou o pintor na sua relação com a sua arte! Todos querem sentirem-se “high” de alguma maneira (embora alguma formas com certeza sejam mais auto-destrutivas que outras…).

Então é isto aí! Para quem já sabe o que é este sentimento de comunhão com o próximo, continue experimentando-o. Não só em tempo de véspera de Natal, onde ele tanto é lembrado, mas ao longo de todo o ano, em cada dia que passa, quando você se sentir forte o bastante para dar esta chance à vida. Para quem ainda não chegou lá, e ainda associa a ajuda a algum tipo de obrigação moral ou perda de tempo: aproveite o fim de ano para começar. Afinal, foi justamente nesta mesma época , ao ouvir os moradores da Quem-lândia cantarem uma música de Natal, mesmo quando o Natal tinha sido totalmente roubado por ele (presentes, comidas e enfeites), que o hilariante Grinch viu seu coração aumentar de tamanho em 3 vezes e ele finalmente se tornou uma pessoa melhor (“Maybe Christmas doesn’t come from a store, maybe Chritmas – perhaps – needs a little bit more”). Enfim, meu caro leitor: nunca é tarde demais para descobrir novos prazeres na vida!

E para todos vocês: um Feliz Natal!

Referências

1. A cena do filme Grinch em que o coração dele aumenta 3 vezes de tamanho

http://www.youtube.com/watch?v=p8J-YmVs1j0&list=PLBDE7C75872A165D1

2. A cena seguinte onde ele salva a vida da menininha que fez com que ele voltasse a acreditar no Natal ou na generosidade (o prazer do rosto dele ao sentir-se “high” por salvá-la é demais!! rsrsrs).

3. Last, but no least: A música do John Denver (Mais anos 70 impossível! Talvez um pouco brega para os dias de hoje, mas, ainda assim, importante na minha infância – tanto estas montanhas quanto a música..)

As Fotos – Em Busca do Tempo Perdido

“Time it was

And what a time it was, it was

A time of innocence

A time of confidences

Long ago it must be

I have a photograph

Preserve your memories

They’re all that’s left you”

(BookEnds – Música de  Paul Simon – 1968)

Como você, leitor, com certeza já deve ter percebido, não existe muita ordem nos meus posts. Comecei a relatar uma viagem antiga (Istambul ao Cairo) – já que a sua comemoração de 10 anos era uma das motivações do blog (por tudo que ela significou)-, então interrompi este relato pulando de volta para dentro da janela para tratar de outros assuntos urgentes, voltando em seguida para o jardim, mas não necessariamente ao mesmo canteiro em que eu estava, seguindo para os relatos de outras viagens ou sonhos. Algumas histórias vão ficando temporariamente inacabadas… Pretendo voltar a elas, mas isto é o máximo que posso prometer (!): meu desejo de voltar a elas em algum momento oportuno. Espero que o leitor entenda que o blog segue estes movimentos como um reflexo da vida e dos seus próprios movimentos naturais que se seguem mesmo desordenadamente, sobretudo para uma mãe, como eu já expliquei no primeiro texto “A inspiração do meu jardim”, que está constantemente neste movimento de ida e volta de dentro de casa para o jardim, confundindo histórias atuais com antigas, sonhos vividos (no passado e no presente) e sonhos a viver, intercalados com outras preocupações momentâneas. Além disto, este movimento é nada menos do que o movimento da memória, do nosso estado de espírito ou mesmo o movimento da navegação pela internet, onde passamos de um nó para outro segundo as interferências do momento – interferências que não são apenas desvios de rota, ou , mesmo sendo, jamais devem ser encarados como perdas, mas sim como experiências que se somam e nos levam a novos caminhos e novos significados a serem descobertos.

Apenas para situar o leitor: logo após o post “O Tempo Reencontrado ou o tempo Redescoberto?”,  escrevi os relatos propriamente ditos da viagem que fiz com o Luis e os meninos por lugares da minha infância nos Estados Unidos, em abril deste ano. No entanto, como faltavam algumas fotos a serem inseridas, ele acabou ficando no rascunho. Veio então a viagem a  NY e a vontade de escrever sobre ela. Agora, ao retornar aos relatos da viagem anterior, resolvi fazer uma mudança e começar apenas por algumas fotos. Você deve estar se perguntando: por que explicar isto se o texto mudado era apenas de um rascunho? Bem, a razão principal é explicar o motivo desta mudança: um grande desejo meu de fazer um elogio à fotografia. Pelos tantos feed-backs que recebi do post anterior,  acho que muitas pessoas se identificaram com a sensação de liberdade que eu descrevi a respeito do momento da viagem em que fiquei sem a máquina fotográfica em NY. Sim, é mágico estar sozinha, como flaneur, sem nenhum compromisso (nem mesmo o de tirar fotos!); é como se a sensibilidade fosse aguçada ao infinito para perceber o lugar, as paisagens e, sobretudo, as pessoas que passam e as histórias de vida que se insinuam nas cenas que vemos pela rua. No entanto, embora este sentimento tenha sido real, adoro ambiguidades e, repentinamente, fiquei com muita vontade (na contramão da minha crítica à tecnologia ou às mídias que nos escravizam ou nos insensibilizam para o momento e para a vida) de fazer um grande elogio à fotografia que é não só uma das mais importantes formas de arte dos dias de hoje, mas também uma forma de documentação inacreditável. Através dela, todos sabemos, quantos momentos são eternizados!

Além disto, ela é uma importante ferramente a serviço da nossa memória: quem dirá o contrário?! Existe também um fenômeno, do qual gostaria muito de falar aqui, que com certeza todas as mães irão entender, mas, sobretudo, aqueles filhos que não mais tem suas mães por perto saberão identificar. As mães são uma espécie de testemunho vivo da nossa história; são elas que se lembram das histórias mais antigas da nossa vida, mesmo das épocas mais remotas da nossa infância, aquelas das quais jamais poderíamos nos lembrar espontaneamente, e de tantas outras histórias, fatos, nomes de lugares ou datas importantes da nossa trajetória do início até a atualidade. Então, quando ela não está mais por perto e queremos reconstruir esta história para passar adiante para as novas gerações, ou simplesmente para revisitá-la, temos que trabalhar numa espécie de quebra-cabeça, juntando partes através de relatos de pessoas amigas, de outros parentes e, é claro, das fotos que dizem tanto dos momentos que ficaram perdidos ao vento.

Então, este post é não só um relato sobre a memória e sua atualização no tempo (através do seu redescobrimento), como também, como eu já disse, um elogio ao poder da fotografia. Escolhi para mostrar aqui algumas fotos que puderam contrapor o passado ao presente nesta trajetória da nossa viagem por lugares da minha infância. Ao recuperá-las, algumas curiosidades… Uma delas, tem um sabor especial em tempos pós-Olimpíadas.

Esta curiosidade diz repseito à Esmeralda de Jesus, uma atleta brasileira (de salto triplo e corridas de sprint) que morava em Boulder, Colorado, na mesma época que minha família, e que tornou-se conhecida dos meus pais e outros brasileiros. Todas as pessoas que já moraram fora do país sabem a importância que existe em promover encontros de grupos de pessoas da mesma nacionalidade que estejam fora por um período ou definitivamente. E, é claro, uma das melhores coisas é juntar este grupo para uma comida típica do país de origem. Algumas das fotos que aparecem nesta galeria – e que se contrapõe às fotos atuais do jantar na casa de amigos em comum em Boulder, a Renee e o Roger- são fotos de uma feijoada na casa da Esmeralda em 1978/1979. Eu nunca mais tive contato com ela desde aquela época, mas sabia que ela estava morando em Boulder naquela fase para treinar, após ter participado das Olimpíadas de Montreal (1976). (Devido à altitude e outras características ambientais, a cidade de Boulder é considerada uma das melhores cidades dos Estados Unidos para treino de corrida e preparo de condicionamento físico. Numa das trilhas que fizemos em abril, em pleno domingo de um dia com previsão de neve, encontramos várias pessoas fazendo a mesma trilha que nós, montanha acima, correndo, com cara de estarem treinando. Achamos realmente inacreditável!) Mas, voltando à Esmeralda, depois de alguns anos que eu voltei ao Brasil,  soube que ela participou das Olimpíadas de Los Angeles (1984), mas que não venceu nenhuma medalha, então realmente me desconectei desta história de vida.

Ao recuperar as fotos antes da viagem para levar ao Roger e Renee (que aparecem também na foto da feijoada), resolvi procurar na internet para ver qual tinha sido o seu paradeiro. E que feliz notícia saber que ela conquistou tantos recordes e medalhas para ao Brasil e que foi uma atleta muito importante para a história do nosso atletismo! É muito bom saber que pessoas que cruzaram as nossas vidas alguma dia conseguiram seguir as suas trajetórias sonhadas, mesmo que não tenham sido caminhos apenas de vitórias (qual o caminho de vida não tem suas muitas derrotas, afinal, que nos fazem mais fortes inclusive?).Vendo as Olimpíadas de 2012 em Londres, sabems que embora todos os atletas que chegaram lá se esforçaram muito durante anos, com grandes conquistas no meio tempo, apenas alguns receberam medalhas; às vezes, por pequenas diferenças de desempenho ou ares de sorte ou azar do momento, às vezes porque realmente são melhores ou estavam mais bem preparados. O comentário do judoca Thiago Camilo para a televisão, ao final da competição em que ele perdeu a chance de disputar a medalha de ouro – para a qual era um dos favoritos – nos diz tudo (infelizmente não consegui recuperar na íntegra as palavras que ele disse em entrevista, mas foi uma fala bastante humana e humilde frente aos outros esportistas). O que importa, afinal, assim como na vida, é o total da trajetória, as tentativas e erros ao lado das grandes vitórias. Recentemente, ao rever uma ótima palestra do ecologist Sérgio Bresserman Vianna da CPFL Cultura, ele fez uma brincadeira no início dizendo que todo o Curriculum deveria trazer também as derrotas daquela pessoa – além dos seus acertos e conquistas -: sábia visão!

Porém, o que achei mais curioso ao rever as fotos e consultar a hisoria “real” ou “original” na internet, foi descobrir (redescobrir ou relembrar!) justamente que no ano daquelas fotos, 1979, enquanto ela tinha uma criança ainda em tamanho de usar cadeira alta (vejam a foto abaixo), ela quebrou um importante recorde de 100 mts rasos (a modalidade estrela do atletismo) nos Estados Unidos. E dois anos depois, mais uma vez. Incrível, não é? Como poderia treinar tanto e ainda cuidar do filho tão pequeno num país estrangeiro?! Como mãe, fiquei intrigada com isto. E, claro, achei absolutamente admirável!

Outra coisa engraçada é sobre a última fotografia da Galeria em que eu apareço com orelhas “sutis” de Minnie. Se algum leitor achar um pouco engraçado uma mulher de mais de 40 anos usando uma tiara de Minnie em plena Disney, não se preocupe, eu não o culpo! Rsrsrs. Porém, como resistir a me transportar no tempo através de uma fantasia? Ainda mais posando na foto ao lado da Cala, uma das mães mais incríveis dos desenhos do Walt Disney – a gorila que adotou Tarzan e, simbolicamente, todos os órfãos do mundo nesta deliciosa história infantil! Além disto, vou confessar: eu não era a única quarentona com tiara de Minnie por lá! 🙂

A música que introduz este post é de um álbum clássico dos músicos Paul Simon e Garfunkel que marcou uma época, ou uma geração (a dos meus pais). Meus pais tinham este álbum e com certeza eu já a ouvi diversas vezes durante a minha infância. Eu nunca tinha reparado na letra até recentemente, quando estava justamente escrevendo este post e a ouvi no carro um dia mostrando para os meninos este CD como “As músicas do tempo em que eu nasci”. A letra, assim como a melodia, é lindíssima, embora fortemente nostálgica.

Porém, assim que terminei de escrever o post e colocar as fotos, por algum motivo, uma outra música me veio à cabeça, do nada: “Futuros Amantes”, do Chico Buarque. Embora a letra tenha me chamado a atenção quando a escutei pela primeira vez como uma música que falava de “amantes” , acho que ela veio à minha mente pois o assunto do amor que se preserva para ser vivido em outros tempos é verdadeiro também para pais, avós ou qualquer geração predecessora. Esta música também é lindíssima e traz (letra e melodia) uma sensação mais alegre e intensa de continuidade, algo que eu gosto bastante e que acho que combina bem com as fotos abaixo. O amor aos filhos cruza gerações e continua se manifestando muitos anos depois: os vestígios estão lá (de fotos, de histórias, de genes herdados), basta sermos mergulhadores e poderemos redescobri-los!

Se quiserem ver a galeria abaixo com trilha sonora, podem escolher :

Bookends – uma música norte-americana do final dos anos 60.

Ou: Futuros Amantes – uma música brasileira de 1993 (meio do caminho para mim!).

Divirtam-se!

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Para quem for da família ou quiser acompanhar as memórias da visita à cidade de Boulder: o post seguinte (já publicado) é:”A Viagem: Em Busca do Tempo Perdido” – uma espécie de “diário de viagem.”

Frick Collection in Freak New York City

Nova York era uma cidade que habitava meus sonhos havia muitos anos. Porém, por um motivo ou por outro, esta cidade parecia fugir de mim todas as vezes em que eu planejava passar por ela dentro de algum outro roteiro. Em abril deste ano, quando estava contando à minha tia sobre os lugares que visitaria nos Estados Unidos com o Luis e os meninos, em busca da minha história, ela me perguntou: “E mais uma vez você não vai à Nova York? Você tem tanta vontade de conhecer esta cidade!” Dei risada e respondi que alguns sonhos precisam ficar mesmo para depois, convivendo com a gente por um longo tempo, sendo apenas alimentados com carinho. Com certeza esta é uma das importantes coisas que devemos ensinar a nossos filhos: que nem tudo acontece quando queremos, ou que algumas coisas levam tempo para acontecer. Do contrário, seríamos pessoas entediadas, sem espaços para desejos, pois tudo estaria realizado ou concluído. Mais do que isto: muitos dos nossos desejos, ou mesmo sonhos, podem não só demorar, mas possivelmente nunca se realizar durante a nossa vida inteira; e tudo bem! Esta é a nossa condição humana, afinal – finita por natureza!

No entanto, existe o outro lado a ser ensinado, aquilo que está no revés deste importante ensinamento (nada fácil ensinar as ambiguidades necessárias da vida!), ou seja: que muitas vezes devemos aproveitar as oportunidades, ou criar oportunidades para as coisas acontecerem. Tantas pessoas passam pela vida sem se lançar a muitas empreitadas por medo de não conseguirem dar conta, medo das dificuldades que sabem que encontrarão pelo caminho, das frustrações ou simplesmente por preguiça de gastarem esforços naquilo que é incerto. Como diz a Clarice Lispector em algum lugar do livro “A Hora da Estrela”, um dos seus personagens economizou tanto a vida, que de tanto economizar a vida se gastou (de qualquer jeito). Claro que sonhos não são sinônimo de viagem e com certeza a maneira como viajar , ou conhecer determinados lugares do mundo, se tornou uma obrigação é também um tema que bem mereceria um ou mais posts neste blog. Porém, não estou falando de viagens como obrigações de currículo, mas sim como resultado de desejos realmente genuínos.

Então, assim que percebi que tínhamos milhas suficientes para ir para os Estados Unidos novamente, achei que era hora de começar a planejar uma viagem exclusivamente para NY; enfim, era hora de pensar seriamente no assunto. Infelizmente, não há muita escolha de datas nesta condição de passagem, então tive que aproveitar uma brecha numa data muito próxima à viagem anterior que tínhamos acabado de fazer e o Luis não poderia ir comigo. Mesmo assim, lá fui eu, embora um pouco triste pela falta do meu grande companheiro de viagens (desde que viajamos juntos pela primeira vez, ainda namorados, soubemos que nosso relacionamento seria para a vida, pois tínhamos o mesmo jeito de ver e querer sentir as coisas nos mundos estranhos e estrangeiros…) De certa forma, com a proximidade do aniversário de 10 anos do meu filho mais velho, a viagem foi como um presente: uma volta aos meus desejos pessoais, independente dos filhos – alguns deles muitos simples, como poder andar na rua até fazer bolhas nos pés sem me preocupar com o cansaço das crianças, ou poder me perder nos museus de arte também sem pressa de ir embora. Algo do qual abrimos mão por um longo tempo; embora seja por uma boa causa, é claro: nossos “grandes” pequenos!

Como iria viajar sozinha, planejei a viagem nos mínimos detalhes. Mesmo assim, nem tudo corre como desejaríamos, o que , com certeza, é a melhor parte de qualquer viagem: aquilo que foge do nosso controle desenhando novos rumos! Uma das primeiras questões era que eu realmente queria um vôo direto, para ficar o mínimo no avião. Como já disse anteriormente, encarar o medo desta grande máquina voadora é sempre um desafio para mim. Infelizmente, no entanto, só consegui confirmar a ida via Dallas, com uma longa escala no meio dos dois vôos. Até pensei em não ir, por este motivo, mas pensando bem, convenci a mim mesma de que a American Airlines era uma empresa segura (há quanto tempo não ouvia sobre nenhum desastre com ela e, afinal de contas, estaria voando num avião da Boeing!). No final, por conta deste vôo, algumas surpresas agradáveis foram reservadas a mim.

A primeira delas, foi a minha companheira de vôo, da poltrona da janela (eu só reservo o corredor!),:era uma moça muito simpática, de 22 anos de idade, que estava indo para o Japão para fazer um curso durante as férias. (Quem viaja sozinho está sempre numa loteria! – pode sentar todo tipo de gente ao seu lado, não é?) Mas ela foi realmente uma ótima vizinha. Primeiro porque era discreta e só conversava quando eu parecia também estar a fim (algo importantíssimo!). Segundo, porque ela também tinha medo de avião, o que ficou claro logo de saída. E, no final, quem a acalmou acabou sendo eu! Não há nada melhor para o medo do que ter alguém com mais medo ao seu lado! Rsrsrs. Mas a menina era realmente uma graça, empolgadíssima ao contar a motivação da sua própria viagem e, passado o medo da decolagem, dormiu como um anjo até a primeira leve turbulência (já tinha me dito que tomaria um antialérgico para dormir!). Eu a acalmei novamente, dizendo que este era “O ponto” de turbulência esperada da rota e que na minha viagem anterior, em Abril, a turbulência nesta mesma região tinha sido muito pior; ela adormeceu novamente até a aterrisagem, quando já parecia mais tranquila por estar chegando, assim como eu! A tranquilidade do vôo, por sinal, foi outra grata surpresa. O comandante já anunciou de cara: “vocês escolheram uma ótima noite para voar: it will be a smooth ride”.

Além de tudo isto (que não é pouco para uma viajante como eu!): fui presenteada com uma vista que com certeza eu jamais poderia ter chegando diretamente do Brasil pelo aeroporto JFK. Ao chegar pelo La Guardia, vindo do oeste dos Estados Unidos, o piloto contornou completamente a ilha de Manhattan de sul a leste: passando pela estátua da liberdade, pela ponte do Brooklyn até o Empire State e o Chrysler – a tarde estava completamente ensolarada e aquela vista pareceu uma maquete encantada de lego, uma visão realmente magnífica de todos aqueles arranha-céus! Ainda por cima, tive a sorte de ter reservado, sem saber, o lado certo do avião para ter esta vista de camarote! Agora me digam, o vôo poderia ter sido melhor?!

Uma vez já na cidade, outra questão que não saiu exatamente como eu previa, e que me deixou absolutamente furiosa, foi ter esquecido a máquina fotográfica ligada a noite toda, sendo que eu não tinha levado o carregador da bateria. O Luis, ao contrário de mim, disse que já tinha imaginado que isto poderia acontecer comigo, pelo meu jeito desligado! (Como as pessoas são previsíveis para aqueles que estão próximos, não?rsrsrs) Logo que percebi, falei com o Luis e ele já me indicou duas lojas conhecidas em material de fotografia em Manhatan, mas já me advertiu que pelo que ele se lembrava nenhuma delas abria aos sábados. Então, como era sexta-feira à tarde, eu sabia que assim que acabasse a bateria eu ficaria “no escuro” por mais de um dia na cidade que tanto queria conhecer! E claro que fiquei meio frustrada, a princípio!

Neste mesmo dia, após o apagão da máquina, curti muito uma adorável experiência de um show de jazz no gramado do Pier 45 no rio Hudson. Saindo de lá, resolvi passear enquanto ainda estava mais ou menos claro por Greenwich Village. As casinhas tão charmosas de tijolo vermelho e a palpitação do bairro com tanta gente andando por todos os lados, as lojas bizarras, os bares (de jazz como o lendário Blue Note, bares de moçada ou bares históricos como os pontos de encontro de Jack Kerouac e outros escritores), tudo isto foi mais que saboreado enquanto me acostumava à grande sensação de liberdade por estar com as mãos vazias, sem a máquina de prontidão. Terminei meu tour à pé na Washington Square, uma praça que fica bem na frente da Universidade NYU. Imagino que não apenas por ser final da tarde (início da noite) de uma sexta-feira, mas também por ser fim das aulas e início das férias de verão, a praça estava absolutamente lotada de gente. Tinham pelo menos uns 10 grupos diferentes de artistas se apresentando em cada canto. Uma bailarina dançando ao som de uma pequena menina tocando violino; uma banda de jazz aqui outra lá; uma moçada tocando violão; um show de percussão mais adiante e outro de Clown. Realmente uma grande sensação de vida pulsando pela cidade! Após sentir toda esta vibração do bairro e da cidade, voltei de metrô para o hotel pensando que com certeza esta é a maior glória e liberdade que um viajante pode ter nos dias de hoje! Superei a sensação de frustração inicial e me dei conta de como é bom poder ver as imagens e o mundo de forma tranquila, sem a obrigação do registro para o depois! Desconfio até que reservamos um espaço especial em nossa memória para estas ocasiões (numa gavetinha especial da nossa mente), mais mágico e cheio de significados (já que não poderão ter o contraponto da realidade as ameaçando!).

Eu já tinha vivenciado esta sensação certa vez quando viajei a trabalho para uma temporada de quase 3 meses na IBM de Hursley, na Inlgaterra. Eu e todos as outras pessoas que iriam trabalhar no projeto, vindas de várias partes do mundo, ficamos hospedadas no mesmo hotel na pequena e turística cidade de Winchester. O Hotel ficava ao lado da linda catedral gótica da cidade: The Winchester Cathedral – uma das maiores deste gênero na Europa – e tinha enormes janelas de vidro, de forma que fosse possível vê-la de qualquer lugar  (quartos, corredores, restaurante ou bar). A vista era simplesmente inacreditável! No entanto, saí de lá sem uma única foto, pois esquecera de levar a máquina fotográfica! E não me incomodei muito com isto, pois as lembranças que ficaram são tão vivas, que parecem não precisar deste testemunho. Nos dias em que havia névoa, os ares de mistério da vista ficavam ainda maiores. Nestes dias, meus companheiros de carona (uma koreana do norte, um italiano e uma espanhola), quando me viam no café da manhã já diziam: “Look, Maria, it’s a foggy day!” – pois já sabiam que eu me encantava com a vista ainda mais nestes dias especialmente ingleses! Como esquecer destes momentos, mesmo que não tenham ficado registrados fisicamente?

E não há dúvidas, acho que os momentos mais especiais da viagem a NY acontecerem justamente durante este apagão!

No dia seguinte, sábado de manhã, a primeira experiência impactante, planejada, embora não fotografada, foi a minha visita a Frick Collection, o primeiro museu que escolhi conhecer em NY. Talvez porque eu tenha ido logo de manhã, ao abrir o museu, e ainda tivessem poucas pessoas (não sei se este museu chega a lotar, embora seja uma das principais atrações da lista do TripAdvisor de NY), talvez porque eu estivesse realmente sem pressa, ou talvez mesmo pela falta de obrigação de fotografar qualquer coisa: a sensação que eu tive foi muito intensa. O acervo de quadros, mostrado na visão tão pessoal do seu dono, Mr. Frick, exatamente na casa onde ele morava, é algo realmente intimista e extremamente encantador. Não é apenas uma daquelas coleções dos grandes museus que leva o nome do dono ou colecionador, mas é verdadeiramente um passeio pela vida que ele e sua família levavam e por sua paixão pela arte. Com certeza pensar que alguém que veio de uma origem que não era humilde, mas também não era muito culta ou aristocrática, pudesse ter tanta paixão pela arte a ponto de construir a sua própria casa, no final da vida, tendo como ponto mais importante uma grande galeria para exposição dos quadros, já pensando inclusive que esta casa poderia se tornar um museu após a sua morte, é demais! Bem sabemos que colecionar arte não é apenas uma questão de paixão estética, é também sobre ter dinheiro, ou sobre demonstração de poder, entre tantas coisas. Porém, estes dois últimos itens poderiam muito bem estar acompanhados de outras formas de exibição menos interessantes. Então, entendo que a escolha da arte para transbordar estas outras questões, é sempre uma escolha apaixonada, apesar de tudo. E o museu transpira esta paixão e o conhecido desejo do Sr Frick de dividir com as pessoas estas obras tão majestosas. Numa sala adjacente à grande galeria, que teria um acervo comprado pela sua filha após a sua morte, com quadros italianos da renascença, me demorei um pouco e quando estava já saindo dela o funcionário do museu me disse: “you’re enjoying it, aren’t you?”. Eu respondi que sim e ele logo disse: “it’s really beautiful!” Ainda me perguntou se eu tinha escutado no fone de ouvido sobre a história da sala propriamente dita. Quando eu disse que não, ele me sugeriu fortemente que eu a ouvisse, pois era muito interessante e eu não deveria perdê-la! Percebi, então, que até mesmo os monitores ou guardas das salas tinham sido cuidadosamente instruídos (ou selecionados) para demostrarem um grande interesse também por todos os aspectos do museu e sua coleção. A visita ao Metropolitan e a outros museus que eu tanto queria conhecer foi incrível também, mas nada superou a minha visita a este “pequeno”, embora tão famoso, museu naquele sábado de manhã.

A segunda experiência, foi a saída de um show que assisti no SummerStage no Central Park neste mesmo dia à noite. O show era de um grupo de dança latina, com coreografia de um brasileiro, e da banda encabeçada por Paquito D’Rivera, célebre saxofonista cubano. Já cheguei com o show acontecendo, mas ver toda aquela galera sentada espalhada pelas arquibancadas ou sentada pelo gramado do parque foi bem emocionante. Não há dúvidas de que os shows em praça pública são uma das melhores coisas que a cidade (ou o país) tem a oferecer nesta temporada de verão! E a m música de Paquito foi a grande sensação da noite! Porém, o melhor de tudo foi mesmo a saída do show. Assim que saí do espaço do SummerStage, diretamente no “centro” do parque, havia acabado de escurecer (eram mais ou menos 9:30 da noite) e percebi que havia uma festa rolando em plena clareira do Central Park! Uma galera com um som altíssimo dançando alucinadamente; de um lado os prédios da cidade totalmente iluminados ao fundo das grandes árvores; do outro, a lua quase cheia iluminando o céu. A cena foi demais! Um casal que vinha ao meu lado logo se lançou na dança, o rapaz desabotoou a camisa inclusive para poder dançar melhor! Algumas pessoas que vinham pelo parque estacionaram suas bikes, outras estavam até de roller skate e uma ou duas com carrinhos de bebês. Mas a moçada estava realmente empolgada e totalmente dançante, com percussão ao vivo completando o som. Achei aquele cena tão inesperadamente surreal! Foi naquele momento que entendi o que o Luis me disse ,certa vez, sobre a sensação de que a cidade faz com que você queira fazer parte dela (como na letra do Sinatra)! No entanto, não pude ficar ali por muito tempo. Assim que vi um dos últimos grandes grupos saindo do Summer Stage, corri para acompanhá-los até a saída do parque (jamais arriscaria ficar perdida por ali no breu, numa cidade com seus limites ainda estranhos para mim!). Mas só de ter presenciado aquela cena, já foi sensacional. Voltei andando pelo lado oeste do Central Park , e depois pela Broadway, desde o Lincoln Center, pensando no quanto esta cidade era realmente a “Freak* City after all!” (*“freak” aqui, no sentido da própria excentricidade!)

Dois dias depois, quando fui ao MoMA, já no final da tarde (com a minha máquina funcionando na mão!), com uma multidão de pessoas tirando fotos de tudo sem parar, fiquei pensando em como foram minhas primeiras experiências em museus como adulta. Lembro-me muito bem que quando viajei com meu irmão e dois amigos pela Europa, também no verão de um mês de julho, achamos tão fantástico como os japoneses tiravam fotos de tudo, sobretudo em Paris, e viam os museus apenas através do click de suas máquinas, mais preocupados em registrar do que em sentir a experiência da visita. Porém, naquela época de mundo pré-digital (pelo menos ao alcance de todos), há quase 20 anos, apenas os japoneses faziam isto. As outras pessoas tiravam uma ou outra foto apenas de seus quadros prediletos. Hoje, passados tantos anos, a maioria das pessoas parecem visitar os museus da mesma forma dos japoneses. Seja com seus celulares ou suas máquinas mais ou menos potentes. Não há dúvidas de que o mundo mudou! Muito mais pessoas tem acesso aos museus hoje, o que é bom, com toda certeza. Mas, a obrigação de determinados roteiros, o “ter que ver”, ou ter que registrar, parece ter esvaziado muita a experiência do contato com as obras de arte ou mesmo com a vida. É tudo apenas uma sequencia de fotos ou de fatos, and that’s all! Como diria Paul Theroux em seu texto sobre a os aviões (ou sobre as viagens): Although it has become the way of the world, we still ought to lament the fact that aeroplanes have made us insensitive to space; we are encumbered, like lovers in suits of armour. Trocando “avião” por “máquina fotográfia” e talvez “mídias digitais”, a imagem do texto continuaria perfeita!

De qualquer forma, ao falar de Theroux, volto a pensar no meu medo de avião e confesso: ontem, após saber através de um amigo que exatamente no dia em que eu voltei de NY (dia 03 de jul) um vôo da American Airlines (exatamente o mesmo vôo para Dallas que eu pegara 6 dias antes – o vôo das 23:55 hs) teve que retornar a Cumbica por motivos de fogo na turbina, cheguei à conclusão de que é hora de dar um tempo às minhas viagens para lugares mais distantes! Rsrsrs..Não vou ser radical como o Ferreira Gular e dizer que nunca mais viajarei de avião, claro que não! Mas digamos que umas férias de voar serão muito bem-vindas! Sorte que meu grande desejo de ir à NY, seja para ver seus prédios, suas praças, seus museus ou conhecer um pouco mais de freak Mr. Frick,  já foi realizado!!!

O Tempo Reencontrado ou o Tempo Redescoberto?

Enfim, voltando ao livro, uma das coisas sobre as quais lembrei-me também, naquela tarde, talvez pela proximidade da minha viagem, foi a respeito de uma discussão que aconteceu nas aulas sobre a tradução do título do último volume: Le Temps Retrouvé , no original em francês. Acredito que a discussão tenha acontecido durante o curso, mas como a memória é falível a erros, pode até ser que eu tenha ouvido esta discussão em outro lugar. Se for o caso, peço desculpas ao leitor… A questão, no entanto, é que parece ter havido algum embate, ou alguma mudança com o tempo, sobre a escolha do termo para a tradução de Retrouvé. Para alguns autores, o termo escolhido teria sido o termo mais literal “reencontrado”, resultando em: “O Tempo Reencontrado”. No entanto, a edição adotada no curso, traduzida pela Lúcia Miguel Pereira, trazia a tradução “O Tempo Redescoberto”, mais apropriado ao sentido da obra como um todo. Ora, sabemos que a tradução de um texto literário não é nada trivial. É algo que habita, sem sombra de dúvidas, o território da interpretação e, portanto, da criação. Entender a língua de origem e a língua da tradução e fazer a ponte, tendo em vista o sentido da obra é algo extremamente complexo e desafiador. No final do post, transponho parte de uma nota da Olgária Matos, trazida no final da edição do livro, justamente sobre o tema “Traduzir Proust”. Ela cita Walter Benjamin nesta nota, inclusive.

E por que o “Tempo Redescoberto” faria mais sentido no conjunto da obra do que o “Tempo Reencontrado”? De alguma forma, pelo mesmo mecanismo que pede que a tradução seja feita como uma obra de criação. Ou seja, a própria memória, como vamos entendendo ao longo da narrativa de Proust, é por si mesma uma obra de interpretação e de criação de significados sobre os acontecimentos do passado. Assim, o fato relembrado, jamais estará disponível para ser reencontrado tal qual ele aconteceu, no seu original. A verbo “descorbir”, por sua vez, traz em seu núcleo a ideia do novo e atual. E mesmo o “redescobrimento”,  carrega esta ideia de atualização daquilo que já é conhecido.

Embora esta ideia estivesse apenas apresentada nas entrelinhas de Proust, alguns anos mais tarde descorbi outro livro que a enunciou claramente para mim. Este, eu descobri ao visitar uma livraria com meus filhos e confesso que o comprei  unicamente pelo fato do título carregar junto o nome deste escritor que tanto me encantou: o livro chamava-se Proust foi um Neurocientista: Como a arte antecipa a ciência. O autor, um neurocientista ele próprio, conta no Prefácio que carregava sempre para o laboratório, para ler nos momentos de espera entre suas experiências sobre a memória, o livro Em Busca do tempo Perdido. A escolha do livro, segundo ele,  não era proposital ou ligada à pesquisa (embora saibamos que um interesse comum atrai diferentes abordagens para um mesmo leitor). Mas, de certa forma, ele descreve que foi meramente por esta coincidência que percebeu que muitas das ideias de Proust, de mais de um século antes, eram extremamente atuais e só agora estavam sendo “provadas” ou “aceitas” pela própria ciência. Por estas conclusões, o autor decidiu começar uma investigação sobre o assunto e acabou por escrever este livro tão interessante que fala não apenas de Proust, mas de outros tantos artistas de diversas áreas, não apenas da literatura (como Cèzanne, Stravinsky, Gertrude Stein, Virginia Woolf… ) para defender a ideia de que muitos dos conceitos atuais, considerados hoje lugar-comum pela ciência, surgiram ou foram ”anunciados”/“enunciados” ao mundo em primeiro lugar por artistas, de forma intuitiva, sendo apenas em um segundo momento “comprovados” pela ciência.

Essa ideia é fantástica e eu, de certa forma,  já tinha sido apresentada a ela em um curso de história da Arte da Renascença, quando um professor chamou atenção para o fato de que a ideia do infinito que possibilitou o desenvolvimento do cálculo diferencial, tão importante para o desenvolvimento da física, química e toda ciência moderna, de alguma forma teria surgido, ou sido resgatado naquele momento histórico, primeiramente como uma ideia conceitual representada pela ideia do ponto de fuga da perspectiva utilizada ou “criada” pela pintura renascentista (o ponto de fuga é o infinito para onde convergem os traços da perspectiva ; diga-se de passagem, no quadro da Anunciação do meu primeiro Post, bem como em outros da época, o ponto de fuga sempre tendia para o ponto onde se situava a imagem do divino, ou de Deus). Para uma Engenheira de Computação que passou parte dos seus primeiros anos de graduação estudando cálculo diferencial e que vive em tempos onde a Ciência e a Tecnologia parecem ser o carro-chefe da sociedade, esta ideia era realmente demais: apaixonante!

Na verdade, a ideia do livro vem ao encontro de um conceito atualmente difundido de que a própria ciência não é apenas “Luz e Racionalidade” e um plano do conhecimento e atividade humana independente dos demais, mas sim, produto também da própria criação, tendo em seu redor muitos outros campos intuitivos que permitem os caminhos até a construção de importante leis e conceitos que hoje tomamos como “universais” e “absolutos”.

No que se refere à memória, por sua vez, uma das principais questões que Proust deixaria transparecer no livro e que chamou a atenção de Lehrer, como eu já disse anteriormente, é a de que a memória vai se transformando com o tempo. Muitos fatos são relembrados da infância de forma diferente a cada vez. Por exemplo, a verruga de Albertine, a amante de Proust, num momento era no queixo, depois na bochecha e em outro, perto dos lábios. Segundo o autor, nos dias de hoje, é exatamente assim que a neurociência enxerga a memória. Ou seja, a ideia de que a memória era uma caixa preta secreta guardada em algum cantinho escuro da mente foi por terra. Atualmente, entende-se que ela é viva e se reconstrói a cada momento segundo uma rede de relações atuais. E o mais curioso: depois que uma memória durante muito tempo esquecida vem à tona, quanto mais vezes ela é relembrada dali para diante, mais distante ela vai ficando da sua versão original, pois maior o conjunto de interpretações e novas informações vão se somando a ela. Ou seja, uma vez lembrada, a lembrança nunca mais será tão acurada (se é que em algum momento ela o foi)…

Para quem assistiu ao lindo filme Cópia Conforme de 2010, prêmio de melhor atriz em Cannes para a atriz Juliette Binoche, com direção de Abbas Kiarostami, um tema parecido entra em discussão. Desta vez, sendo o objeto não mais apenas a memória – embora no final do filme este tema apareça também, reelaborado de uma forma inusitada e incrível: a memória no limite da criação – , mas sim a Cópia da obra de arte e a sua relação com a obra original. São muitos os questionamentos: qual o valor subjetivo que se estabelece entre o expectador e a obra original versus o expectador e a obra-cópia, se muitas vezes nem sequer temos o conhecimento de ser a obra testemunhada uma cópia? Quais os limites entre a citação de um obra de arte dentro de outra e a própria cópia desta obra?Assim como na discussão da tradução de uma obra literária, sabemos que algumas cópias só são identificadas como cópias anos mais tarde, quando alguns maneirismos e moda de uma época deixam de ser transparentes para o expectador, pois já não são mais corriqueiros. Os desdobramentos desta discussão no filme são muito interessantes e transcendem a discussão da obra de arte simplesmente, sendo extrapolados para muitas outras relações do sujeito com seu objeto e as diversas relações que se estabelecem entre eles no eixo “originalXcópia”.

Esta discussão, de qualquer forma, é uma discussão extremamente atual. Proust continua atual, assim como é atual a ideia de que a tradução, a leitura e a relação do sujeito com o objeto (seja do leitor com o livro, do expectador com quadro ou escultura, do cientista com suas pesquisas ou mesmo da pessoa com suas memórias) não são relações estáticas, mas relações em constante transformação, já que o sujeito é sempre um ser em transformação por uma rede de ideias que se movimentam (valores que mudam, novas experiências vividas, novas informações apreendidas etc.) Ora, então, nada mais atual do que a tradução do título do último volume da grande obra de Proust para o português: não há dúvidas de que o tempo e os acontecimentos passados jamais serão reencontrados tal qual foram deixados. Isto não impede, no entanto, que nos prestemos à maravilhosa tarefa de redescobri-los, tirando-os das brumas da nossa consciência, reinventando-os e atualizando-os para o contexto atual de nossas vidas.

Foi com estas divagações que, prestes a iniciar a minha própria Viagem em Busca do Tempo Perdido, passei o final de uma tarde de um simples dia de semana, após ajudar meu filho com sua simples lição de casa. Simples lição de casa? Não, tenho certeza de que a sua professora não planejou esta lição para ser uma simples lição, já devia imaginar que poderia ser um porta de entrada para boas lembranças na casa de cada família de seus alunos. Naquele simples dia, esta experiência foi, na verdade, um extraordinário presente!

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Trecho da Nota de Olgária Chain Féres Matos: Traduzir Proust (Em Busca do Tempo Perdido: O Tempo Redescoberto: p. 293-295)

“Todas as grandes obras da escrita(…) contêm nas entrelinhas sua tradução virtual.” Com estas palavras, Benjamin toca no essencial da conversão de um língua em outra. No ensaio A tarefa do tradutor, ele mostra a diferença entre a elaboração do texto original e o ato de traduzir: enquanto a palavra original sobrevive em sua própria língua, o mesmo não ocorre na tradução. Razão suficiente para que esta não seja simples duplicação ou repetição. A tradução sofre a ação do tempo. O que é atual em um determinado momento pode, em seguida, parecer démodé, o que era moeda corrente pode tomar uma feição arcaica, a tradução literal pode ser nons-sens.

A tradução deve abarcar as mutações da língua. Mais: necessita preservar o que faz o parentesco entre as línguas, tornando as traduções possíveis, bem como o que as faz estrangeiras. Toda tradução é uma maneira provisória de procurar um metron de seu estranhamento: “ Assim como os estilhaços de uma ânfora – para reconstruir o todo – devem ser contíguos em todos os pormenores, mas não idênticos uns aos outros, também a tradução deve procurar, antes de mais nada, não se assemelhar ao sentido original, mas, em um movimento de amor até o mínimo detalhe, fazer passar em sua própria língua o modo de visar do original”. Isto quer dizer que a tradução não procura preferencialmente comunicar pela enunciação – com o que ela seria “exata” mas perderia o essencial: “Aquilo que um poema contém para além da comunicação não é universalmente tido como o inalcançável”, escreve Benjamin, “o misterioso, o ‘poético’? Aquilo que o tradutor só pode transmitir fazendo ele mesmo obra de Poeta?” O poeta-tradutor não pretende a objetividade. Encontra uma harmonia entre as línguas, na maneira pela qual roça o sentido-sentido que só pode ser tocado ‘pela brisa da língua como o vento tangia a harpa eólia”.

Bibliografia

PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido: O Tempo Redescoberto. Tradução: Lúcia Miguel Pereira. 13a Edição. São Paulo: Ed. Globo, 1998.

LEHRER, Jonah. Proust foi um Neurocientista: Como a arte antecipa a ciência. 1a Eição. Rio de Janeiro: Ed. Best Seller, 2010.

Meu Encontro com Proust

Recentemente, eu o Luis e as crianças fizemos uma viagem por lugares da minha remota infância, nos Estados Unidos. Algumas semanas antes desta viagem, enquanto eu terminava os últimos preparativos, ou ainda, me preparava emocionalmente para revisitar meu passado, meu filho mais velho trouxe como lição de casa fazer uma pesquisa sobre o livro que o pai ou a mãe mais gostaram de ler. “Que delícia de lição”, logo pensei!.

Pois bem, pensei em muitos livros; pensei nos meus autores preferidos, na verdade mulheres – Clarice Lispector e Virgínia Woolf-, mas não tive muita dúvida em responder que era “Em Busca do Tempo Perdido”. Expliquei a ele um pouco do que se tratava o livro e segui dando uma longa justificativa sobre o meu interesse. Meu filho disse, então: “está bom mãe, não precisa falar tanto! Não vou escrever tudo isto…” Acho que nesta idade eu também não gostava muito de escrever; acredito que seja normal um certa economia de palavras no texto para aqueles que estão começando a dominar o código da escrita (não apenas para prevenir os erros de ortografia e gramática, que ainda acontecem com frequência – e sempre acontecerão!-, mas também para não nos expormos demais – afinal, a escrita é sempre um grande exposição!). Eu disse a ele que a justificativa era mais importante do que o nome da obra, pois o que importa não é o livro, mas o que este livro significa para um (e cada) leitor, em especial. Então, abreviei um pouco meu relato, explicando apenas que se tratavam de memórias, muitas de infância, e que a primeira sensação que tive ao pegar o livro nas mãos e ler as primeiras 2 ou 3 páginas foi de certeza de que eu me encantaria pela narrativa, quase com a sensação de que eu já conhecia esta história antes mesmo dela ser contada. (Quem quiser apreciar algumas destas páginas iniciais, elas foram colocadas no blog, no post anterior.) Meu filho acabou de escrever a lição, fechou o caderno e o guardou na mochila. Eu, no entanto, continuei pensando no livro pelo resto do dia… Até porque, a história da minha relação com o livro se cruzava também com a história do nascimento do meu filho, de uma forma curiosa, como vocês verão mais adiante.

Lembrei-me que fui apresentada ao livro por um professor de uma das minhas matérias do curso de filosofia; um curso relacionado à chamada Escola de Frankfurt, sobretudo a Adorno e suas relações com Walter Benjamim, importante crítico e tradutor de Proust. O professor nos disse que não seria obrigatório ler este livro, mas que ninguém perguntasse a ele quais eram as páginas onde se encontrava a célebre passagem da Madeleine, pois ele não diria, de jeito nenhum! Para quem nunca ouviu falar desta passagem, trata-se do momento em que – após tentar repetida e frustradamente buscar suas memórias diretamente através da sua consciência – o narrador finalmente chega a elas através de uma forma inesperada, ao provar um doce que não comia havia muito tempo, a madeleine, e sentir um gosto familiar de sua infância. Segundo o professor, se alguém quisesse lê-lo, como referência, teria que lê-lo por inteiro, senão seria como assassinar o livro. Bem, isto fazia total sentido com o tema do curso, já que uma das indagações dos críticos de Proust era entender como era possível um livro de 7 volumes, com narrativas longas e parágrafos (ou mesmo frases!) de várias páginas sobreviver em tempos do capitalismo, onde as engrenagens do famoso filme do Chaplin Tempos Modernos parecem atropelar o tempo e a relação das pessoas com ele, fazendo com que tudo seja experimentado em quantidades fracionárias, mais palatáveis ao mundo do consumo. Diga-se de passagem, toda esta discussão em tempos em que a internet nem era um sonho ainda! Mas a ideia da fragmentação do tempo e da experiência humana  já se anunciava, de certa forma, conceitualmente. Neste contexto, fiquei curiosa e, embora o trabalho final do curso fosse na verdade sobre um texto crítico de Adorno à peça de Samuel Beckett (Fim de Partida – ou Fim de Festa), resolvi comprar pelo menos o primeiro volume da narrativa de Proust e ver se eu conseguiria me entregar àquilo que ainda não estava claro se seria uma difícil ou prazerosa tarefa. Como eu já disse, a resposta vocês já sabem! Fiquei absolutamente encantada! A maneira tão subjetiva de contar a sua relação com o mundo, com o espaço e com o tempo era absolutamente magnetizante; não era preciso justificar mais sobre a importância de Proust na história recente da literatura mundial. Assim, chegar até o famoso trecho da Madeleine não foi nenhum castigo, mas puro deleite. Bem observado que tudo isto ocorreu em tempos onde o “Meu tempo” era de fato “todo Meu” e eu podia dispor dele como bem quisesse! Tanto gostei do livro, que no final do ano meu irmão me deu o segundo volume de Natal, o qual li também interessadamente. Depois disto, no entanto, o tempo ficou mais escasso, acabei inclusive abandonando o curso por motivos de mudanças de horário de trabalho (já que esta era minha segunda graduação…) e, desta forma, os dois primeiros volumes de Em Busca do Tempo Perdido foram guardados nas prateleiras, sem o restante de seus companheiros. Confesso que pelo mesmo argumento do meu professor, jamais pensei em comprar o último volume da coleção (o número 7) apenas para saber o final. Inclusive porque, neste caso, estava claro que o final não parecia ser o importante, mas sim a narrativa. O processo da memória, afinal, também pode ser encarado com uma grande viagem; enfim, uma jornada!

Alguns anos depois, já desligada do curso de filosofia, resolvi retomar a ideia de fazer alguns cursos como ouvinte, agora no Instituto de Línguas, que oferecia uma grade noturna mais compatível com meus horários de trabalho. Foi então que fiquei grávida, justamente do meu primeiro filho, e quando estava já no final da gravidez, resolvi fazer um curso  sobre Proust. Meu filho nasceria duas semanas após o início do curso, então procurei a professora e disse a ela que estava muito interessada; no entanto, eu teria que fazer uma breve interrupção no meio, quando nascesse meu filho, embora pretendesse voltar ainda antes do curso acabar. Ela sorriu e disse que não haveria problema, mas que achava difícil eu voltar depois do nascimento. Porém, assim foi. Depois do nascimento, desapareci por um mês e em seguida retornei. Ela riu, mais uma vez, e disse: “eu realmente não acreditava que você pudesse voltar!” Como o curso acontecia entre 7 e 11 da noite, com um intervalo no meio, combinei com ela que assistiria apenas uma das partes da aula, de 1 hora e 50 min (+-): alguns dias seria a primeira parte, outros a segunda, dependendo do horário de mamada do meu filho no dia (quem é mãe sabe que bebês pequenos tem horários meio inconstantes…). Ela concordou e assim seguimos. Certo dia, até me usou como exemplo para discutir a relação da criança com o tempo e disse: “Imaginem que o filho da Maria Elisa já tem uns 3 anos e ela quer ir com ele, à pé, numa feira perto de sua casa num domingo de manhã. Mas ela tem que voltar logo para terminar o trabalho do curso para o dia seguinte.” Então perguntou à turma: “Vocês acham que ela conseguirá ir rápido?” E respondeu também ela mesma: “Claro que não! Pois o filho pequeno vai querer parar a cada 2 metros da caminhada, entretendo-se com tudo que ele vir pela frente. Terá um compromisso apenas com o “agora”, não se ligando na relação com o depois ou com as consequências da passagem do tempo.” Todos riram, é claro, e,  também é claro, realmente não demorou muito para eu entender do que ela estava falando… (Rsrsrs de mãe!) Mas, voltando ao Proust, após a discussão de trechos de alguns dos volumes iniciais, ela pediu que comprássemos o último volume para amarrar algumas ideias do curso, bem como para discutirmos o sentido da experiência da Lembrança para Proust . Neste contexto, me senti totalmente autorizada a cometer o que eu considerava um “crime”, ou seja, dar um grande salto na obra até o seu final sem ter lido tudo o que estava no meio!

Como adoro parênteses – não disfarço – aqui vai um, apenas para comentar um fato cômico, do qual as mães vão rir muito e talvez, algumas, possam até ficar horrorizadas. Num dos últimos dias de aula, quando cheguei em casa, por volta de 9:30 da noite, talvez mais tarde – não me lembro muito bem-, não encontrei o Luis nem meu filho no apartamento. Apenas um bilhete: “Estamos no Empório do Nono” (um bar que ficava a menos de uma quadra de casa, naquela época). Gelei até a espinha (meu filho tinha apenas 2 meses!) e saí correndo como uma flecha em direção ao bar. Quando entrei – era um dia chuvoso – estavam todos apertados no bar lotado no meio do ambiente esfumaçado de cigarro e de muito barulho (naquela época, ainda não era proibido fumar em lugares públicos fechados) e lá estava o Luis com seus amigos conversando, rindo muito e tomando um chopinho com o carrinho ao lado vazio. E o Meu lindo bebê? Estava nos braços de uma mulher que eu nunca tinha visto na minha vida! Corri até ela e tomei-o dos seus braços com ar seco e bravo. Ela sorriu sem graça, “Ah, você é a mãe?” e pediu mil desculpas, justificando que tinha achado-o tão fofo e que era tão inusitado um bebê no bar àquela hora, que não resistiu e pediu “aos rapazes” da mesa para pegá-lo um pouquinho no colo! Bem, eu estava tão preocupada com tudo que nem tive tempo de sentir remorsos – sentimento que até caberia pelo meu jeito rude – afinal, dada a explicação, era apenas uma outra mulher com seu instinto maternal de plantão! Dei uma grande bronca no Luis (é claro!) e saímos logo de volta para casa. Senti, de alguma forma, que estava acabada a minha festa das saídas noturnas para encontrar-me com Proust, em busca do tempo perdido. Depois disto, mesmo depois da bronca, não me sentiria mais autorizada a sair novamente e deixar meus dois homens sozinhos abandonados ao destino! Pensando bem, será que a professora tinha razão na sua indagação sobre a minha volta, afinal? De qualquer forma, que falta não faz uma mulher para colocar ordem numa casa, não é mesmo?! Rsrsrs…

Bem, o leitor poderá estranhar, mas terei que fazer aqui uma parada, justamente após o fechamento deste parêntese. O texto ficou longo demais. Tendo em vista que o meu leitor em potencial também não tem Todo o tempo do mundo para si próprio e também temendo não passar pelo “departamento de censura” que revisa alguns textos para mim, achei melhor terminar do mesmo jeito que a Sherazade, reservando para o leitor a continuação apenas para o próximo capítulo! 🙂

O Livro: Em Busca do Tempo Perdido

Este post é simplesmente uma citação que será referência para o próximo post. Pensei em deixá-lo no final do meu texto, como uma nota complementar para quem quisesse se aventurar a lê-lo. No entanto, pensei mais sobre o assunto e cheguei à conclusão de que não teria coragem de colocar o trecho inicial de uma das maiores obras literárias de todos os tempos numa simples nota de rodapé. Não, não: este pecado eu não cometeria! Então, aí vai:

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Primeiras páginas de Em Busca do Tempo Perdido – No Caminho de Swann (Marcel Proust – bibliografia no final)

Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo. Às vezes, mal apagava a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: “Adormeço”. E, meia hora depois, despertava-me a ideia de que já era tempo de procurar dormir; queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela; durante o sono, não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler, mas essas reflexões tinham assumido uma feição um tanto particular; parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro: uma igreja, um quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V. Essa crença sobrevivia alguns segundos ao despertar; não chocava minha razão, mas pairava-me como um véu sobre os olhos, impedindo-os de ver que a luz já estava acesa. Depois começava a parecer-me ininteligível, como, após metempsicose, os pensamentos de uma existência anterior; o tema da obra destacava-se de mim, ficando eu livre para adaptar-me ou não a ele; em seguida recuperava a vista, atônito de encontrar em derredor uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, mas talvez ainda mais para o espírito, ao qual se apresentava como algo sem causa, incompreensível, algo de verdadeiramente obscuro. Indagava comigo que horas seriam; ouvia o silvo dos trens que , ora mais, ora menos afastado, e marcando as distâncias como o canto de um pássaro em uma floresta, descrevia-me a extensão do campo deserto, onde o viajante se apressa em direção à parada próxima: o caminho que ele segue vai lhe ficar gravado na lembrança com a excitação produzida pelos lugares novos, os atos inabituais, pela recente conversa e as despedidas trocadas à luz de lâmpada estranha que ainda o acompanham no silêncio da noite, e pela doçura próxima do regresso.

Apoiava brandamente minhas faces contra as belas faces do travesseiro que, cheias e frescas, são como as faces de nossa infância. Riscava um fósforo para o olhar o relógio. Em breve seria meia-noite. É esse o instante em que o efermo obrigado a partir e que teve de pousar em um hotel desconhecido, desperto por uma crise, alegra-se ao perceber debaixo da porta uma raia de luz. Que ventura! Já é dia! Dentro em pouco os criados se levantarão, poderá chamar, virão prestar-lhe socorro. A esperança de ser aliviado lhe dá ânimo para sofrer. Agora mesmo julgou ouvir passos; os passos se aproximam, depois se afastam. E a raia de luz que estava sob a porta desapareceu. É meia-noite; acabam de apagar o gás; o último criado partiu, e será preciso ficar toda a noite a sofrer sem remédio .

Tornava a adormecer, e às vezes não despertava senão por um breve instante, mas o suficiente para ouvir os estalidos orgânicos das madeiras, para abrir os olhos e fixar o caleidoscópio da escuridão e saborear, graças a um lampejo momentâneo de consciência, o sono em que estavam mergulhados os móveis, o quarto, aquele todo do qual eu não era mais que uma parte mínima e em cuja insensibilidade logo tornava a integrar-me. Ou então, enquanto dormia, retrocedera sem esforço a uma época para sempre transcorrida de minha primitiva existência, tornando a encontrar alguns de meus terrores infantis, como o medo de que meu tio-avô me puxasse os cachos e que se dissipara no dia  – início para mim de uma nova era – em que mos haviam cortado. Tal acontecimento, eu o esquecera durante  o sono, mas sua lembrança voltava-me assim que conseguia despertar para fugir às mãos de meu tio-avô; em todo caso, como medida de precaução, envolvia completamente a cabeça com o travesseiro antes de regressar ao mundo dos sonhos.

Às vezes, como nasceu Eva de uma costela de Adão, nascia uma mulher, durante meu sono, de uma falsa posição de minha coxa. Oriunda do prazer que eu estava a ponto de epxerimentar, imaginava que era ela que mo oferecia. Meu corpo, que sentia do ela meu próprio calor, procurava juntar-se-lhe, e eu despertava. O resto dos humanos se me afigurava como coisa muito remota em comparação com aquela mulher que eu havia deixado momentos antes; minha face estava ainda quente de seu beijo e meus membros doloridos pelo peso de seu corpo. Se, como às vezes acontecia, apresentava os traços de alguma mulher a quem conhecera na vida, ia dedicar-me inteiramente  a este fim: encontrá-la, tal como os que empreendem uma viagem para ver com os próprios olhos uma desejada cidade e imaginam que se pode gozar, em uma coisa real, o encanto da coisa sonhada. Pouco a pouco sua lembrança se dissipava, e eu esquecia a filha de meu sonho.

Um homem que dorme mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos. Ao acordar consulta-os instintivamente e neles verifica em um segundo o ponto da terra em que se acha, o tempo que decorreu até despertar; essa ordenação, porém, pode-se confundir e romper. Se acaso pela madrugada, após uma insônia, vem o sono surpreendê-lo durante a leitura, em uma posição muito diversa daquela em que dorme habitualmente, basta seu braço erguido para deter e fazer recuar o sol, e , no primeiro minuto em que desperte, já não saberá da hora, e ficará pensando que acabou apenas de deitar-se. Se adormece em posição ainda mais insólita e contrafeita, por exemplo sentado em uma poltrona depois do jantar, dar-se-á então uma completa reviravolta nos mundos desorbitados, a cadeira mágica o fará viajar a toda velocidade no empo e no espaço, e , no momento de abrir as pálpebras, pensará que está deitado alguns meses antes, em uma terra diferente. Quanto a mim, no entanto, bastava que estivesse a dormir em meu próprio leito e que o sono fosse bastante profundo para relaxar-se a tensão de meu espírito, o qual perdia então a planta do local onde eu adormecera; assim, quando acordava no meio da noite, e como ignorasse onde se achava, no primeiro instante nem mesmo sabia quem era; tinha apenas, em sua singeleza primitiva, o sentimento da existência, tal como pode fremir no fundo de um animal; estava mais desapercebido que o homem das cavernas; mas aí a lembrança – não ainda do local em que me achava, mas deu alguns outros que havia habitado e onde poderia estar – vinha a mim como um socorro do alto para me tirar do nada, de onde não poderia sair sozinho; passava em um segundo por cima de séculos de civilização e a imagem confusamente entrevista de lampiões de querosene, depois de camisas de gola virada, recompunha pouco a pouco os traços originais de meu próprio eu.

(…)

Sem dúvida que eu estava agora bem desperto, meu corpo dera uma última volta e o bom anjo da certeza imobilizara tudo em redor de mim, deitara-me sob minhas cobertas, em meu quarto, e pusera aproximadamente em seu lugar, no escuro, minha cômoda, minha mesa de trabalho, minha lareira, a janela da rua e as duas portas. Mas embora soubesse que não me achava nesses quartos, cuja presença a ignorância do despertar me apresentara ao menos como possível, sem todavia oferecer-me sua imagem distinta, a verdade é que me fora dado um impulso à memória; em geral, não tentava adormecer logo em seguida; passava a maior parte da noite a recordar minha vida de outrora, em casa de minha tia-avó em Combray, em Balbec, em Paris, em Doncières, em Veneza, em outras partes ainda, a recordar os lugares, as pessoas que ali conhecera, tudo o que delas tinha visto, o que me haviam contado a seu respeito.

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Bibliografia

PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido: No Caminho de Swann. Tradução: Mario Quintana. São Paulo: Ed. Globo, 1997. Páginas 9 a 15

Paul Theroux – “Foi por medo de avião…”

“Que eu segurei pela primeira vez na sua mão”, como diria o Belchior do tempo dos meus pais. Não há dúvidas de que segurar na mão de alguém na hora do medo é o que existe de mais tranquilizador. Se for da “pessoa amada”, tanto melhor! Mas dizem que a Lady Di também ficou muito amiga da embaxatriz Lúcia Flecha de Lima depois de uma tempestade com grande turbulência de avião em terras brasileiras, quando esta acalmou a princesa. Verdade ou não, amizades e amores que começam dentro do avião onde uma das pessoas tem medo já foi tema de filme e é um assunto bastante curioso. Afinal, muitas vezes, é lá onde estão as dificuldades, e em sua superação, que muitas histórias de cumplicidade desabrocham com intensidade.

Bem, este texto foi escrito há alguns meses, porém, neste momento, por diversos motivos, parece fazer todo o sentido publicá-lo, já que acabamos de voltar de ma viagem em que estes temas estiveram presentes mais uma vez.

A idéia deste post, na verdade, surgiu para voltar ao território do viajante no blog, aproveitando uma conversa que tive com uma amiga, ainda durante as últimas férias escolares, justamente sobre um medo em comum de avião. Por tudo isto, resolvi fazer um post com a citação de mais uma das minhas referências preferidas (a esta altura, já ficou claro para o leitor que este blog é também uma eśpecie de quebra-cabeça-mosaico de trechos de livros, quadros, comentários de pessoas ou filmes que me marcaram). A ideia é também dividir com vocês um texto que acho muito representativo do que significa, para mim, a viagem de longas distâncias verdadeiramente falando, ou seja, as grandes jornadas (a idéia do peregrino em contraste com o turista – para quem assistiu à palestra do Ives de la Taille da CPFL Cultura que postei há algum tempo, nas palestras sobre Educação). Para quem não assisitu a esta palestra, ela é – para além do contexto da viagem – uma grande crítica aos valores dos tempos atuais. Tempos em que se valoriza sempre a chegada, esquecendo-se da trajetória que fez com que chegássemos até lá, ou seja, esquecendo-se da idéia de “construção”, tão importante para a vida – seja qual for o plano da vida para o qual nosso olhar estiver focado!

Voltando ao texto que apresentarei, trata-se de parte da introdução do livro “The Old Patagonian Express”, do autor Paul Theroux. Por muito tempo o Luis sugeriu que eu fizesse esta leitura, já que o autor é um dos seus preferidos sobre o assunto de viagens, um assunto tão caro a nós dois. Porém, confesso que como não uso o inglês com tanta regularidade quanto gostaria, sempre fico com certa preguiça de ler nesta língua, pela lentidão do meu vocabulário. No entanto, no ano retrasado, após voltar de uma viagem em que fizemos um trecho relativamente comprido de trem (de São Francisco a Seattle, uma noite inteira e parte de um dia), ficamos muito surpresos e felizes com a experiência. Na verdade, não imaginávamos que no país dos aeroportos e dos aviões pudéssemos ter uma experiência tão agradável sobre os trilhos. Assim, quando voltamos ao Brasil, resolvi embarcar nesta viagem literária do Paul Theroux que começa em Boston rumo à Patagônia justamente de trem.

Além disto, como já falei, é um texto muito bem-humorado (ou talvez o contrário – escrito exatamente por um autor um tanto quanto mal-humorado!) na sua referência às viagens de avião, já que ele parece ser, como eu, alguém que também padece do tal medo. Por isto, eu dedico alguns destes parágrafos aos meus queridos companheiros de medo de avião! 🙂 . É  dedicado também (um pouco ironicamente, embora muito carinhosamente também!) ao meu querido irmão, que teve como um dos seus grandes sonhos de vida trabalhar como engenheiro projetista de aviões e seguiu este sonho com tanta coragem e sucesso. Digo isto com orgulho de irmã! E assumo que até me emocionei quando o primeiro avião do qual ele trabalhou no projeto voou pela primeira vez (quase com a mesma emoção de alguém que vê uma criança andar pela primeira vez depois de tantas noites em claro – diga-se de passagem, quem trabalha ou já trabalhou com projetos, de qualquer tipo, também sabe do que estou falando…: ver a coisa “rodando”, funcionando ou voando!, depois de tanto trabalho é mesmo de mexer com as emoções! Meu irmão é sempre meu consultor sobre as quedas famosas de avião. E sempre começa rindo e dizendo: “veja bem, em primeiro lugar, o avião que teve problemas não era da companhia para a qual eu trabalho!” (Algumas piadas são típicas do meio!)

Nesta mesma viagem em que fizemos o percurso de trem, este tema do medo já tinha aparecido. Não apenas pelo meu nervosismo de sempre – mãos suadas na decolagem, aterrisagem e momentos de turbulência; um ritual enorme antes de entrar no avião (algumas garrafas de água para aguentar o ar seco sem ter que ficar pedindo para a aeromoça toda hora, chicletes para melhorar a sensação do ouvido na decolagem e aterrisagem, a necessidade de tomar um vinho ou um Dramin em viagens maiores para poder relaxar etc.) – , mas, também, por outras coincidências. Ao chegarmos em Dallas e entrarmos na fila dos passaportes estavam na nossa frente dois homens de idade próxima à nossa, que pareciam estar em viagem a trabalho para algum curso da empresa (pareciam ser da Embraer). Um deles dizia para o outro que sua mulher precisou de um tratamento de mais de um ano com duas sessões semanais de terapia para conseguir viajar de avião pela primeira vez. Agora, eles já podiam fazer viagens curtas, como para a Bahia; mesmo assim, abaixo de vários remédios calmantes e sempre com a condição de que não saíssem em mau tempo e de que os vôos fossem sempre de aviões da Embraer ou da Boeing e jamais da TAM (bem, parece que alguns assuntos são mais do que apenas piadas do meio!). Achei engraçado e, enquanto pensava “tomara que o tempo esteja bom entre Dallas e São Francisco”, pensava também: tem gente muito pior do que eu neste assunto! Logo depois que voltarmos ao Brasil, saiu uma coluna do Ferreira Gular na Folha de São Paulo extremamente bem-humorada, falando justamente sobre o medo dele de avião e sua decisão de nunca mais pisar em um! (a coluna é do dia 8 de agosto de 2010 – assim que der, farei um post com seu conteúdo). Então, quando comecei a ler o livro, o assunto estava totalmente em alta para mim e me diverti muito!

Segue o texto… Apenas para contextualizar, ele está explicando a motivação de tão longa viagem de trem, assim como a motivação do próprio livro, fazendo também uma crítica aos muitos livros de viagem que começam já no seu destino, ao invés de descever a trajetória até o autor, ou personagem, chegar até lá. Grifei as partes mais relevantes para quem tiver preguiça ou dificuldade de ler tudo em inglês.

Travel is a vanishing act, a solitary trip down a pinched line of geography to oblivion.

“What’s become of Waring

Since he gave us all the slip?”

But travel book is the opposite, the loner bouncing back bigger than life to tell the story of his experiment with space. It is the simplest sort of narrative, an explanation which is is own excuse for the gathering up and the going. It is motion given order by its repetition in words. That sort of disappearance is elemental, but few come back silent. And yet the convention is to telescope travel writing, to start – as so many novels do – in the middle of things, to beach the reader in a bizarre place without having first guided him there. “The white ants had made a meal of my hammock”, the book might begin; or, “Down there, the Patagonian valley deepened to Grey rock, wearing its eons stripes and split floods.” Or, “From the balcony of my room I had a panoramic view over Accra, capital of Ghana (Which Tribe Do You Belong To? By Alberto Moraiva).

My usual question, unanswered by these – by most – travel books, is: How did you get there? Even without suggestion of a motive, a prologue is welcome, since the going is often as fascinating as the arrival. Yet, because curiosity implies delay, and delay is regarded as luxury (but what the hurry, anyway?), we have become used do life being a series of arrivals or departures, of triumphs and failures, with nothing noteworthy in between. Summits matter, but what of the lower slopes of Parnassus? We have not lost faith in journeys from home, but the texts are scarce. Departure is described as a moment of panic and ticket-checking in an airport lounge, or a fumbled kiss at a gangway; then silence until, “From the balcony of my room I had a panoramic view over Accra…”

Travel, truly, is otherwise. From the second you wake up you are headed for the foreign place, and each step (now past the cuckoo clock, now down Fulton to the Fellsway) brings you closer. …

The literature of travel has become measly, the standard opening that farcial-against-the-porthole view from the plane’s titled fuselage. The joke-opening, that straining for effect, is now so familiar it is nearly impossible to parody. How does it go? ‘Below us lay the tropical green, the flooded valley, the patchwork quilt of farms, and as we penetrated the cloud I could see dirt roads threading their way into the hills and cars so small they looked like toys. We circled the airport and, as we came in low for landing, I saw the stately palms, the harvest, the rooftops of shabby houses, the square fields stitched together with crude fences, the people like ants, the colorful…’

I have never found this sort of guesswork very convincing. When I am landing in a plane my heart is in my mouth; I wonder – doesn’t everyone? – if we are going to crash. My life flashes before me, a brief selection of sordid and pathetic trivialities. Then a voice tells me to stay in my seat until the plane comes to a complete stop; and when we land the loud-speakers break into orchestral version of Moon River. I suppose if I had nerve to look around I might see a travel writer scribbling, ‘ Below us lay the tropical green – ‘. (Nota: esta descrição da aterrisagem é demais!!!)

Meanwhile, what of the journey itself? Perhaps there is nothing to say. There is not much to say about aeroplane journeys. Anything remarkable must be disastrous, so you define a good flight by negatives: you didn’t get hijacked, you didn’t crash, you didn’t throw up, you weren’t late, you weren’t nauseated by the food. So you are grateful. The gratitude brings such relief your mind goes blank, which is appropriate, for the aeroplane passenger is a time-traveler. He crawls into a carpeted tube into that is reeking of disinfectant; he is strapped in to go home, or away. Time is truncated, or in any case warped: he leaves in one time-zone and emerges in another. And from the moment he steps into tube and braces his knees on the seat in front, uncomfortably upright – from the moment he departs, his mind is focused on arrival. That is, if he has any sense at all. If he looked out the window he would see nothing but the tundra of the cloud layer, and above is empty space. Time is brilliantly blinded: there is nothing to see. …

But apologies are not necessary. An aeroplane flight may not be travel in any accepted sense, but it certainly is magic. Anyone with the price of a ticket can conjure up castled crag of Drachenfels or the Lake Isle of Innisfree by simply using the right escalator at, say, Logan Airport in Boston – but it must be said that there is probably more to animate the mind, more of travel, in that one ascent on the escalator, than in the whole plane journey put together. The rest, the foreign country, what constitutes the arrival, is the ramp of an evil-smelling airport. If the passenger conceives of this species of transfer as travel and offers the public his book, the first foreigner the reader meets is either a clothes-grubbing customs man or a mustached demon at the immigration desk. Although it has become the way of the world, we still ought to lament the fact that aeroplanes have made us insensitive to space; we are encumbered, like lovers in suits of armour.

This is obvious. What interests me is the waking in the morning, the progress from familiar to the slightly odd, to the rather strange, to the totally foreign, and finally to the outlandish. The journey, not the arrival, matters; the voyage, not the landing. Feeling cheated that way by other travel books, and wondering what exactly it is I have denied, I decided to experiment by making my way to travel-book country, as far south as the trains run from Medford, Massachusetts; to end my book where travel books begin.